Por Francisco Alves dos Santos Júnior
Segue uma decisão com atualização da matéria relativa a remédio de alta complexidade a ser forneceido pelo SUS.
Boa leitura.
PROCESSO
Nº: 0812107-27.2022.4.05.8300 - PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL
AUTOR: E G DA S
REPRESENTANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
RÉU: ESTADO DE PERNAMBUCO. e outro
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO)
D E C I S Ã O
1. Breve Relatório
Busca a parte autora provimento jurisdicional que
lhe assegure a antecipação dos efeitos da tutela, inaudita altera
parte, de forma que se determine que à União e ao Estado de Pernambuco
disponibilizem ao Autor o medicamento ABIRATERONA (ZYTIGA®) 250 MG, na dose de
04 (quatro) comprimidos por dia, 120 comprimidos ao mês, de forma contínua, até
a progressão da doença ou toxidade limitante, pelo tempo que se fizer
necessário, ou, alternativamente, disponibilizem em Juízo
numerário suficiente para a aquisição direta da medicação pela parte junto aos
fornecedores pelo tempo necessário aos trâmites burocráticos de sua aquisição e
disponibilização pelos demandados;
Inicial instruída com procuração e documentos.
Decisão sob Id. 4058300.23549367 na qual foi
concedido o benefício da Justiça Gratuita e determinada a remessa dos autos ao
NATS/PE.
O NATS ofertou parecer sob Id. 4058300.23828663.
É o relatório, no essencial.
Passo a decidir.
2. Fundamentação
2.1. Da responsabilidade solidária dos entes
federativos
O funcionamento adequado do SUS é de
responsabilidade solidária da União, dos Estados-Membros e dos Municípios,
consoante assentado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SISTEMA
ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS
ENTES FEDERATIVOS. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO. REPERCUSSÃO GERAL
DECLARADA PELO STF. SOBRESTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. 1. O funcionamento do
Sistema Único de Saúde - SUS é de responsabilidade solidária da União,
Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades tem
legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a
garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros.
Precedentes do STJ. 2. O reconhecimento, pelo STF, da repercussão geral não
constitui hipótese de sobrestamento de recurso que tramita no STJ, mas de
eventual Recurso Extraordinário a ser interposto. 3. A superveniência de
sentença homologatória de acordo implica a perda do objeto do Agravo de
Instrumento que busca discutir a legitimidade da União para fornecimento de
medicamentos. 4. Agravo Regimental não provido. (STJ, Agravo Regimental no
Agravo de Instrumento n.º 1107605, Segunda Turma, Relator(a) HERMAN BENJAMIN,
DJE Data: 14/9/2010).
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO
ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES
FEDERATIVOS. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1.
A Corte Especial firmou a orientação no sentido de que não é necessário o
sobrestamento do recurso especial em razão da existência de repercussão geral
sobre o tema perante o Supremo Tribunal Federal (REsp 1.143.677/RS, Min. Luiz
Fux, DJe de 4.2.2010). 2. O entendimento majoritário desta Corte Superior é no
sentido de que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios são
solidariamente responsáveis pelo fornecimento de medicamentos às pessoas
carentes que necessitam de tratamento médico, o que autoriza o reconhecimento
da legitimidade passiva ad causam dos referidos entes para figurar nas demandas
sobre o tema. 3. Agravo regimental não provido. (STJ, Agravo Regimental no
Recurso Especial n.º 1159382, Segunda Turma, Relator(a) MAURO CAMPBELL MARQUES,
DJE Data: 1/9/2010)."
Nada obstante, referida solidariedade não obsta que
o magistrado, diante de uma situação concreta, direcione o cumprimento da ordem
de fornecimento de medicamentos a determinado ente, de forma a melhor
operacionalizar o atendimento célere do comando judicial, tal como reconhecido
pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 855178, sem prejuízo das
compensações financeiras que se façam necessárias entre os entes.
2.2. Das premissas a serem observadas sobre o tema
Programaticamente, o direito à saúde integra o
sistema de proteção da Seguridade Social e configura direito social
prestacional, expressamente consagrado nos art. 6º e 196 da vigente
Constituição da República.
O seu objeto programático (constituído por
prestações materiais na esfera da assistência médica e hospitalar) está
vinculado, de forma contundente, ao direito à vida e ao princípio da dignidade
da pessoa humana, devendo ser analisado nesta perspectiva e à luz do direito
positivo concretizador dessa programação constitucional, sem desprezar a
dogmática jurídico-constitucional que estrutura o sistema como um todo,
especialmente os princípios da universalidade da saúde pública, com as
limitações do princípio da legalidade e da igualdade de tratamento.
E no centro disso tudo exsurge a tenebrosa escassez
de recursos, cuja alocação exige escolhas trágicas pela impossibilidade de
atendimento integral a todos.
O Supremo Tribunal Federal traçou diretrizes que
devem ser ponderadas na solução de conflitos, que podem ser assim resumidas:
"I. É de natureza solidária a responsabilidade dos
entes da Federação no serviço público de saúde;
II. Em princípio, o conteúdo do serviço público de
saúde restringe-se às políticas adotadas pelo SUS. Por isso, "deverá ser
privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa
escolhida pelo paciente, sem que não for comprovada a ineficácia ou a
impropriedade da política de saúde existente".
III. Sujeitam-se ao controle judicial as políticas
públicas eleitas pelo SUS pela não inclusão de fármacos e procedimentos. Não
basta afirmar o direito à saúde para obrigar o SUS a fornecer fármaco ou a
realizar procedimento não incluído no sistema. É indispensável a realização de
ampla prova para demonstrar a existência da situação singular ("razões específicas
do seu organismo") da ineficácia ou impropriedade do tratamento previsto
no SUS.
IV. A Administração Pública não é obrigada a fornecer
fármaco sem registro na ANVISA, já que sua inclusão no Sistema Único de Saúde
depende prévio registro.".
De outro prisma, decidiu o Superior Tribunal de
Justiça - STJ, no Recurso Especial nº 1.657.156/RJ, representativo da
controvérsia, com publicação em 12/09/2018, sobre a concessão de medicamento
não constante nos Protocolos Clínicos do SUS e estabeleceu a exigência de três
requisitos cumulativos para autorizar sua concessão na via judicial, verbis:
"i) Comprovação, por meio de laudo médico
fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da
imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia,
para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos
autorizados pela agência."
Modula-se os efeitos do presente repetitivo de
forma que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa
somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do
acórdão embargado, ou seja, 4/5/2018
Em sede de embargos de declaração, opostos pelo
Estado do Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça -STJ esclareceu que,
no caso do fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS, conforme
precedente estabelecido no citado repetitivo, o requisito do registro na ANVISA
afasta a obrigatoriedade de que o poder público forneça remédios para uso off
label - aquele prescrito para um uso diferente do que o indicado na bula,
fora do rótulo -, salvo nas situações excepcionais autorizadas pela Agência,
modificando um trecho do acórdão a fim de substituir a expressão existência de
registro na Anvisa para existência de registro do medicamento na Anvisa,
observados os usos autorizados pela agência.
O Relator do recurso, ministro Benedito Gonçalves,
ressaltou que o esclarecimento em embargos de declaração é necessário para
evitar que o sistema público seja obrigado a fornecer medicamentos que,
devidamente registrados, tenham sido indicados para utilizações off
label que não sejam reconhecidas pela ANVISA nem mesmo em caráter
excepcional.
Segundo o Relator, ainda que determinado uso não
conste do registro na ANVISA, na hipótese de haver autorização, mesmo precária,
para essa utilização, deve ser resguardado ao usuário do SUS o direito de
também ter acesso ao medicamento.
Todavia, mais recentemente, o Plenário do
Supremo Tribunal Federal (STF), decidiu, em 22/05/2019,
que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem
registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvo em casos
excepcionais. A decisão foi tomada, por maioria de votos, no julgamento do
Recurso Extraordinário (RE) 657718, com repercussão geral reconhecida,
de relatoria do ministro Marco Aurélio.
Com efeito, o Plenário, por maioria de votos, fixou
a seguinte tese para efeito de aplicação da repercussão geral:
"1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer
medicamentos experimentais.
2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de
medicamento por decisão judicial.
3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem
registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido
(prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três
requisitos:
I - a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso
de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
II - a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação
no exterior;
III - a inexistência de substituto terapêutico com
registro no Brasil.
4) As ações que demandem o fornecimento de
medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em
face da União.".
Mencionada Suprema Corte ainda vai decidir quanto
aos medicamentos, já aprovados pela ANVISA, mas que, devido ao alto custo e à
ausência de forças orçamentárias para custeá-los, ou ainda pelo fato de que
possam ser substituídos por outros fármacos que se encontram nas listas
de procedimentos do SUS, não foram incluídos rol dos medicamentos que
podem ser fornecidos pelo SUS.
Essa matéria já se encontra sub judice, no
Recurso Extraordinário n.º 566.471-RN. Com efeito, o Plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 11.03.2020, que o Estado
não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente,
quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de
Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS) e as
situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão
geral (Tema 6) [1].
Conforme consta no site do STF(2), o julgamento
desse RE foi pautado para 10.11.2021, e posteriormente, pautado para outra
data, que consta do Dje 217, de 2021, divulgado em 04.11.2021.
Fixadas tais premissas, passo a analisar o caso
concreto.
2.3. Das especificidades dos tratamentos em questão
O Sistema Único de Saúde já prevê um programa
específico para o tratamento do câncer, concretizado através dos Centros de
Alta Complexidade em Oncologia (CACONs) e das Unidades de Assistência de Alta
Complexidade (UNACONs), que se realiza por meio de cadastramento prévio e,
portanto, verificação do caso clínico, encaminhamento e acompanhamento conforme
evolução da doença.
Deste modo, para a obtenção de tratamento
específico, indispensável a sua sujeição à política pública existente para o
tratamento de câncer, estabelecida pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) e
executada por intermédio dos CACONs, não sendo possível o fornecimento direto
de medicamento para tratamento privado.
Somente com a prescrição do tratamento junto aos
centros de alta complexidade vinculados ao INCA poderá o paciente postular o
medicamento excepcional, não padronizado pelo SUS, e desde que reste comprovado
que o tratamento público usualmente fornecido tenha se mostrado ineficaz no
combate ao avanço da doença.
Não mais havendo padronização de medicamentos, mas
apenas de procedimentos terapêuticos (quimioterapia, radioterapia etc.) para
cada tipo e estágio de câncer, a indicação dos fármacos antineoplásicos
necessários a cada paciente fica ao encargo dos médicos que integram a Rede de
Atenção Oncológica, de acordo com as evidências científicas a respeito e os
fatores específicos de cada caso, sendo que tudo deve ser alcançado, como dito,
pelo próprio estabelecimento de saúde credenciado, e somente para os pacientes
que estiverem recebendo seu tratamento no local.
Os procedimentos oncológicos são realizados através
de autorizações (APAC-Onco), nas quais devem constar as informações pertinentes
ao tratamento de cada paciente, como diagnóstico, tipo histológico, bem
como o tratamento proposto.
Desta feita, o médico oncologista, dentro de um
protocolo estabelecido, tem relativa liberdade para indicar o melhor tratamento
para o paciente, com exceções de alguns casos pontuais que apresentam portarias
específicas.
Esses procedimentos são periodicamente auditados
por gestores ligados ao Ministério da Saúde e, em grande parte, possuem teto
remuneratório, que, na verdade, é o maior entrave na efetivação dos tratamentos
de câncer, responsável pela imensa maioria das ações de medicamentos
antineoplásicos.
E acerca do caso em análise, assim foi o parecer do
Núcleo de Assessoria Técnica em Saúde (NATS) do TJPE, cuja conclusão foi a
seguinte (Id. 4058300.22468028):
"O medicamento ABIRATERONA foi
incorporado ao SUS a partir da Portaria SCTIE/MS nº 38 de 24 de julho de 2019.
A disponibilização do tratamento deve ser realizada pelo CACON/UNACON, que são
unidades de alta complexidade no tratamento em oncologia vinculadas ao SUS. Em
Pernambuco são habilitados os seguintes centros:
(....)".
Dessa forma, tenho por configurada a probabilidade
do direito de acesso ao medicamento, considerando que já há decisão para sua
incorporação, de modo que não se vislumbra justificativa para a negativa de
fornecimento, especialmente diante da gravidade da doença, que evoluirá
com prejuízos clínicos caso não se tenha acesso ao fármaco.
Na hipótese, entraves burocráticos para a
implementação da terapia não podem impor limitações ao direito da saúde do
paciente, especialmente quando se trata de doença grave.
Por sua vez, a hipossuficiência é atestada por meio
da declaração de 4058300.23529813, que deve ser presumidamente aceita para fins
de comprovação das frágeis condições financeiras do requerente, que,
ressalte-se, está sendo assistido pela Defensoria Pública do Estado de
Pernambuco.
Resta, ainda, repita-se, igualmente demonstrado, o
perigo de dano, considerando a necessidade do medicamento solicitado para
controle da evolução da doença, conforme atestado pelo relatório médico de Id.
4058300.23529816
Nesse sentido, comprovados os requisitos
necessários à concessão da tutela provisória de urgência, faz jus o(a)
demandante ao fornecimento imediato do medicamento pelo Estado, em caráter de
urgência.
3. Dispositivo
Diante de todo o exposto:
a) Defiro a tutela de urgência requerida para
determinar que o ESTADO DE PERNAMBUCO forneça ao Autor, no prazo de 10 (dez)
dias úteis, o medicamento ABIRATERONA (ZYTIGA®) 250mg, nos
termos da prescrição médica constante dos autos, sem prejuízo de posteriores
compensações financeiras que se fizerem necessárias entre os entes federados na
esfera administrativa (vide item 2.1 supra);
b) Determino que o ESTADO DE PERNAMBUCO adote todas
as providências administrativas para evitar delongas desnecessárias ao
cumprimento desta decisão, autorizando o réu, de logo, caso não possua o(s)
medicamento(s) em seus estoques, a adquiri-lo(s) urgentemente, deixando
para momento posterior qualquer ajuste financeiro a ser feito (vide item 2.1
supra);
c) advirto o ESTADO DE PERNAMBUCO de que o
desatendimento do prazo assinalado no item b, para o fornecimento da medicação
supracitada, nas dosagens e quantidades prescritas, conduzirá à aplicação
de multa diária, sem prejuízo do sequestro dos recursos necessários para o
cumprimento da obrigação;
d) Intime-se o ESTADO DE PERNAMBUCO para
cumprimento desta decisão, no prazo consignado, anexando-se aos expedientes os
documentos médicos juntados ao feito;
e) No momento oportuno, digam as partes se há
provas a produzir, especificando-as e justificado o seu requerimento (Prazo de
15 dias, contato em dobro em favor da advocacia Pública).
f) Caso não seja requerida a produção de prova, voltem-me
os autos conclusos para julgamento.
Cumpra-se, COM URGÊNCIA.
Recife, 23.08.2022.
Francisco Alves dos Santos Júnior
Juiz Federal, 2ª Vara/PE
(lsc)
_________________________________________________
[1] Disponível em
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439095&caixaBusca=N
Acesso em 22.08.2022.
[2] Disponível em
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2565078
Acesso em 23.08.2022.