segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Judicialização da Saúde Pública. Novo Caso.

Por Francisco Alves dos Santos Jr
 
 
Segue sentença, na qual se debate, novamente, um problema que envolve a judicialização da saúde pública.
Boa leitura.
 
 
 
 
PROCESSO Nº: 0800255-16.2016.4.05.8300 - PROCEDIMENTO ORDINÁRIO
AUTORA: A K R DE A N
ADVOGADO: D F G P (e outro)
RÉU: UNIÃO FEDERAL - UNIÃO.
2ª VARA FEDERAL - JUIZ FEDERAL TITULAR
 
 
 
Sentença tipo B.
 
EMENTA: - DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. SAÚDE PÚBLICA. UNIVERSALIZAÇÃO, ISONOMIA E FORÇAS ORÇAMENTÁRIAS.
A universalização constitucional da saúde pública, de caráter programático, tem por limite as forças econômico-financeiras do orçamento público nacional, e tem em vista  que todos tenham direito ao uso da saúde pública, mas esse princípio há de ser observado dentro da isonomia igualmente constitucional, vale dizer, em igualdade de condições, sem privilégios para quem quer que seja.
O Sistema Único de Saúde - SUS é universal, mas igualitário por excelência.
Improcedência.
 
Vistos, etc.
1. Relatório
A K R DE A N, qualificada na petição inicial, propôs esta ação de obrigação de fazer com pedido de antecipação de tutela em face da UNIÃO. Alegou, em síntese, que: a) é portadora de uma doença genética rara, sem cura e potencialmente fatal denominada ANGIODEMA HEREDITÁRIO (CID 10 - D 84.1); b) conforme laudo médico assinado pela Dra. Roberta A. Castro - CRM-SP: 153.449 / CRM-PE: 17.809, a Autora "tem o diagnóstico confirmado de Angioedema Hereditário Tipo 2 (CID-10:D84.1) desde julho de 2014, com déficit funcional da proteína inibidora de C1 esterase em duas ocasiões - 25% e 49% (valor de referência 70 a 130%) e inibidor de C1 esterase quantitativo - 26mg/dl (valor de referência 23 a 41 mg/dl)."; c) o mesmo laudo indica que a Autora "apresenta edema recorrente em pés, mãos, face além de episódios de dor abdominal intensa e acompanhada de vômitos secundária a edema de alças intestinais. Por tais crises, necessitou procurar o pronto socorro diversas vezes e esses edemas não respondem ao tratamento com corticoesteroides e/ou anti-histamínicos, sendo necessário o uso de icatibanto ou do inibidor de C1 esterase nas crises graves. Atualmente em uso de Ácido Tranêxamico (1g/dia) como profilaxia das crises, mantendo um bom controle. Sua última foi em maio de 2014."; d) "o Angioedema Hereditário é uma condição genética que temos como controlá-la, porém, mesmo sob controle poderão haver crises as quais, mais uma vez, são imprevisíveis. Como a paciente tem desejo de gastar, não deve continuar com o tratamento atual (Ácido tranexâmico) por ser contra indicado na gestação, e como as outras opções de tratamento profilático seriam Inibidor de C1 Esterase humano (que pode ser usado em gestantes) e o Danazol, o qual não pode ser utilizado em gestantes, por ser um andrógeno atenuado tem como efeito colateral o aumento de peso, hirsutismo, alterações menstruais, aumento do apetite, acne, aumento das enzimas hepáticas, além de masculinização do feto feminino. Visando sua segurança, solicito a liberação do paciente, Ana Karine Rocha Andrade Nattrod, tenha o tratamento de profilaxia adequado e seguro para programar sua vida familiar, sem correr o risco de causar danos aos feto e/ou de apresentar crises graves de angioedema, os quais podem levar ao edema laríngeo (edema de glote), colocando sua vida em risco de morte por asfixia."; e) o medicamento prescrito CINRYZE (c1 esterase) é o único indicado para o tratamento medicamentoso da autora diante das suas atuais e excepcionais condições de saúde, já que se encontra em risco pela superdose do DANAZOL (que não está sendo eficaz) e, pois, não existindo nenhum outro com o mesmo princípio ativo, similar ou genérico que o substitua; f) o tratamento com medicamento prescrito, CINRYZE® tem um custo altíssimo; g) diante da impossibilidade de adquirir o tratamento medicamentoso indicado e prescrito por seu médico, repita-se, ÚNICO APTO PARA TAL FIM, o qual lhe garantirá a preservação de sua saúde e, mais do que isso, de sua vida, foi solicitado ao Ministério da Saúde informações sobre a disponibilização/padronização do referido medicamento; h) o Ministério da Saúde, por meio da Portaria 109/2010, informou que o medicamento em questão não está "contemplado" na rede pública de saúde que para a sua doença, há disponibilidade de alternativas terapêuticas no âmbito do SUS. Teceu outros comentários. Protestou o de estilo. Ao final, requereu a antecipação dos efeitos da tutela para que a União seja condenada a disponibilizar o medicamento, na forma e nos quantitativos que se façam necessários, de acordo com o relatório médico/prescrição. Deu valor à causa. Instruiu a inicial com documentos. Comprovou o recolhimento das custas.
Decisão de 15/01/2016, indeferindo o pleito antecipatório[1].
A União Federal apresentou Contestação[2]. Levantou, preliminarmente, ilegitmidade passiva ad causam. No mérito, defendeu ausência de fundamento jurídico para determinação de fornecimento de medicamento; que não teria sido solicitado, até o momento, a inclusão do medicamento no registro da ANVISA; não teria sido comprovada a impropriedade ou ineficácia da política de saúde existente. Teceu outros comentários. Pugnou, ao final, pela decretação de improcedência dos pedidos.
Requerida a habilitação do advogado DANIEL FERREIRA GOMES PERCHON.[3]
Em sede de Réplica, foram rebatidos os argumentos da defesa e reiterados os termos da Inicial. Requereu-se, ainda, a concessão de tutela antecipada e realização de perícia médica.
É o relatório, no essencial.
Passo a decidir.
2. Fundamentação
2.1. Da preliminar de ilegitimidade passiva ad causam
O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm firme jurisprudência, no sentido de que podem ficar no polo passivo de ações como esta, envolvendo sempre delicado assunto relativo à saúde pública, qualquer das Unidades da Federação, porque, no entender dessas Cortes, todas têm responsabilidades pela saúde pública brasileira.
Nessa esteira de raciocínio, tenho que não deve ser acolhida a preliminar de ilegitimidade passiva levantada pela União.
2.2. Do mérito propriamente dito
Requereu, a Autora, a título de especificação de provas, a produção de prova pericial médica, oportunidade na qual poderiam ser mitigadas as eventuais dúvidas quanto à eficácia do medicamento postulado e/ou ineficácia dos medicamentos fornecidos pelo SUS para o caso em apreço.
Tenho que não cabe a realização de perícia médica, como requerido, porque mesmo que se concluísse, na pretendida perícia, que o médico que indicou o noticiado medicamento estava com razão, conforme veremos, o tratamento por ele indicado não poderia ser deferido, porque à margem dos procedimentos aprovados pelo SUS.
O interesse médio coletivo da população coloca-se acima de um interesse isolado de um médico e do seu Cliente, porque, como veremos, embora o Sistema Único de Saúde - SUS seja universal, também é igualitário por excelência.
Tenho que a universalização da saúde pública, na Constituição, tem a finalidade de estabelecer que todos podem dela fazer uso, mas dentro das forças econômico-financeiras do orçamento público, em igualdade de condições, sem privilégios e/ou tratamento diferenciado.  Assim, cabe a Administração Central da saúde pública, dentro das regras orçamentárias e administrativas, estabelecer os limites da saúde pública universal e quem dela quiser fazer uso tem que observar esses limites, sob pena de ferir-se o princípio da isonomia, igualmente estabelecido na Constituição.
Ou seja, o Estado Brasileiro não pode conceder tratamento médico diferenciado para nenhum dos seus súditos, tem que fazê-lo em caráter universal, mas igualitário.
E os médicos brasileiros deveriam ser cientificados disso para não passarem medicamentos e/ou tratamentos à margem dos limites econômico-financeiros do SUS, provocando a judicialização desse delicado problema nacional.
Então, inspirado nesse entendimento, é que decido o mérito desta demanda.
Impende registrar, ademais, que o medicamento pretendido não está, sequer,  registrado na Agência de Vigilância Sanitária - ANVISA, fato esse que até impede a sua negociação e uso no território nacional.
Com efeito, o caput do art. 12 da Lei nº 6.360/1976 estabelece que nenhum medicamento, droga, insumo farmacêutico e correlato, inclusive importado, pode ser industrializado, exposto à venda ou entregue a consumo antes de registrado no Ministério da Saúde, atribuição atualmente exercida pela Anvisa, força do inciso II do §1º do art. 2º da Lei nº 9.782/1999.
Eis a redação do referido art. 12 da Lei nº 6.360/76:
"Art. 12 - Nenhum dos produtos de que trata esta Lei, inclusive os importados, poderá ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de registrado no Ministério da Saúde.".
A Lei nº 9.782/99 estabelece, no inciso II do §1º do seu art. 2º:
"Art. 2º  Compete à União no âmbito do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária:  § 1º  A competência da União será exercida: II - pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVS, em conformidade com as atribuições que lhe são conferidas por esta Lei;"
Portanto, embora o medicamento tenha sido receitado por importante e competente Médica, para fins de tratamento da doença que acomete a Autora, a ausência do respectivo registro na ANVISA, e consequente não autorização por procedimento do SUS, constituem óbices intransponíveis à determinação para que seja fornecido pela rede de saúde pública.
Ademais, ressalte-se que o art. 19-T da Lei nº 8.080/90, incluído pela Lei nº 12.401/2011, veda, em todas as esferas de gestão do SUS, a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na ANVISA, verbis:
"Art. 19-T. São vedados, em todas as esferas de gestão do SUS: I - o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento, produto e procedimento clínico ou cirúrgico experimental, ou de uso não autorizado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA; II - a dispensação, o pagamento, o ressarcimento ou o reembolso de medicamento e produto, nacional ou importado, sem registro na Anvisa.".
Sublinhe-se, ainda, que o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da STA 175 (Rel. Min. GILMAR MENDES), firmou orientação no sentido de que, regra geral, deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.
Registre-se, finalmente, que o Judiciário não pode interferir na Administração da saúde pública, obrigando essa Administração a fornecer medicamento, cujo uso não está aprovado no território nacional pela Autarquia própria, a ANVISA, tampouco encontra-se na lista de remédios que devem ser fornecidos à população pelo Serviço Único de Saúde - SUS.
Sendo assim, sob todas as óticas, a decretação de improcedência dos pedidos é medida que se impõe.
2.3 - Verba Sucumbencial
A parte autora está em gozo do benefício conhecido por 'Justiça Gratuita', pelo que a sua condenação nas verbas de sucumbência(§ 2º do art. 98 do novo Código de Processo Civil)deve ficar subordinada à condição suspensiva e temporal do § 3º desse mesmo artigo desse diploma processual, o qual incorporou regras semelhantes da Lei nº 1.060, de 1950, e do entendimento do  plenário do Supremo Tribunal Federal - STF, no julgamento de três embargos de declaração, transformados em agravos regimentais, nos recursos extraordinários nºs 249.003, 249.277 e 284.729[4]
E a verba honorária, tendo em vista o esforço, dedicação do Patrono da UNIÃO na elaboração da sua peça de defesa, para qual, tendo em vista a respectiva fundamentação. deve ser arbitrada em valor razoável(§ 2º do art. 85 do NCPC) e de forma fixa, porque presente situação prevista no § 8º do art. 85 do NCPC.
3. Dispositivo
Diante de todo o exposto, julgo improcedentes os pedidos desta ação e dou o processo por extinto, com resolução do mérito(art. 487, I, NCPC).
Por força dos julgados acima referidos do Supremo Tribunal Federal - STF e dos § 2º do art. 98 do NCPC, sob a condição suspensiva e temporal do § 3º desse dispositivo legal, condeno a Autora nas custas judiciais e em verba honorária, que, à luz dos dispositivos legais indicados no subtópico "2.3" da fundamentação supra, arbitro em R$ 3.000,00 (três mil reais), corrigidos monetariamente a partir do mês seguinte ao da publicação desta sentença, pelos índices do manual de cálculos do Conselho da Justiça Federal - CJF, observada as regras da Lei nº 11.960, de 2009, mais juros de mora, à razão de 0,5% (meio por cento) ao mês, incidentes a partir da data do trânsito em julgado desta sentença ou de acórdão que a mantenha(§ 16º do art. 85 do NCPC), sobre o valor já monetariamente corrigido.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Recife, 28 de agosto de 2016.

Francisco Alves dos Santos Jr.
Juiz Federal, 2ª Vara/PE



[1] Id. 4058300.1628566
[2] Id. 4058300.1718233
[3] 4058300.1735966
[4] ATA Nº 37, de 09/12/2015. DJE nº 251, divulgado em 14/12/2015
No mesmo sentido, mesmo relator, no julgamento de idênticos embargos de declaração, relativamente ao RE 249.003/RS(disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1760105) e no RE 284.729(disponível em http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1865697).