Por Francisco Alves dos Santos Júnior
A comunidade "Entra a Pulso" fica numa área muito valorizada da cidade do Recife, tendo por vizinho mais famoso o Shopping Center Recife. Pois bem, essa comunidade adveio de ocupação de terreno acrescido de marinha por pessoas carentes, quando a região ainda era um alagado. Como se sabe, terreno de marinha ou acrescido de marinha é de propriedade da UNIÃO. Lá pelo deste século, UNIÃO aforou todo o terreno para o Município do Recife. Então, algumas pessoas que ocupam o lugar há muitos anos propuseram ação de usucapião do domínio útil contra a UNIÃO e contra o MUNICÍPIO DO RECIFE. Na sentença abaixo, julga-se uma dessas ações.
Boa leitura.
Obs.: sentença pesquisada e minutada pela Assessora Maria Patrícia Pessoa de Luna.
PROCESSO Nº: 0009837-35.2000.4.05.8300 - USUCAPIÃO
AUTOR: MARIA LEOPOLDINA DA SILVA
ADVOGADO: Renan Resende Da Cunha Castro e outro
RÉU: UNIÃO FEDERAL - UNIÃO. e outros
ADVOGADO: Larissa Rangel Wanderley e outro
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
Sentença Tipo A, registrada eletronicamente
EMENTA:- USUCAPIÃO. TERRENO ACRESCIDO DE MARINHA. DOMÍNIO ÚTIL. CONTRATO DE CESSÃO SOB O REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO.
- A UNIÃO cedeu a área onde está edificado o imóvel usucapiendo para o MUNICÍPIO DO RECIFE (cessionário), com vistas a proceder à regularização fundiária dos moradores de baixa renda da comunidade denominada "Entra Apulso".
- Terreno acrescido de marinha, sob regime de aforamento, pode o respectivo domínio útil ser objeto de usucapião (Súmula 17 do TRF/5ªR).
Procedência.
Vistos etc.
1. Relatório
MARIA LEOPOLDINA DA SILVA, qualificada na petição inicial,
propôs, em 02/06/2000, esta "AÇÃO DE USUCAPIÃO " contra VAN
HOVER FERREIRA VELOSO, LIGIA DA PAUMA VELOSO, MIKAEL EL JAIME, EDVANDO
MORENO GOES, EDVALDO MORENO GOES e UNIÃO, objetivando a
declaração de domínio útil da Autora sobre o imóvel descrito na inicial,
situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa Viagem, Recife/PE (parte
da gleba do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento Sítio do Meio,
Boa Viagem, Recife/PE). Alegou, em síntese, que: residiria no imóvel situado na
Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa, Viagem, Recife/PE, por lapso
temporal superior a 05 (cinco) anos, exercendo, em relação ao referido bem,
posse mansa, pacífica, ininterrupta e com ânimo de dono durante toda a extensão
do aludido período; a área de terreno usucapienda se encontrava abandonada, não
afetada por eventual proprietário a qualquer destinação específica, somente lhe
sendo atribuída função social pelos demandantes, quando nela teriam edificado
acessão e passado a residir; o imóvel objeto da presente ação de usucapião
possuiria área inferior a 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados);
a propriedade do terreno seria da União Federal (terreno de
marinha), havendo aforamento estabelecido em favor do suplicado, conforme
certidão de propriedade exarada pelo Registro Geral de Imóveis
desta Capital; pretenderiam os requerentes, dada a impossibilidade de adquirir
o domínio pleno do imóvel em tela, usucapir o domínio útil referente àquele
imóvel, ou seja, extinguir a relação de aforamento existente entre a União e o
suplicado e, ao mesmo tempo, criar novo aforamento, entre suplicantes e
União; os autores preencheriam todos os requisitos constitucionais
estabelecidos no art. 183, pois exerceriam posse em relação a imóvel com área
inferior a 250m2, por lapso temporal superior a 05 (cinco) anos, de forma
mansa, pacífica e ininterrupta, com ânimo de enfiteuta e utilizando-o exclusivamente
para sua moradia, tornando-se assim hábeis a adquirir o domínio útil da área
acima descrita. Teceu outros comentários. Transcreveu dispositivos
constitucionais e legais. Requereu, ao final: a) a citação por edital de VAN
HORVEN FERREIRA VELOSO e sua esposa, LIGIA DA PAUMA VELOSO, MIKAEL EL
JAIME, EDVANDO MORENO GOES E EDVALDO MORENO GOES; b) a citação por mandado da
UNIÃO e dos confinantes posseiros; c) cientificação dos representantes legais
das Fazendas Públicas Federal, Estadual e Municipal, para que manifestem
interesse na presente ação; d) a concessão do benefício da justiça gratuita; e)
seja julgado o presente feito procedente em todos os seus termos,
declarando-se, por sentença, o domínio útil dos suplicantes sobre a área
usucapienda. Deu valor à causa. Protestou o de estilo. Inicial instruída com
procuração e documentos.
Distribuída originariamente para esta Justiça
Federal, em 02/06/2000, foi declinada a competência para a Justiça Estadual (id.
4058300.11821967), porque a UNIÃO peticionou nos autos, petição protocolada
em 08/08/2001, instruída com documento, dizendo não ter interesse na demanda (id.
4058300.11821965).
Remetido o feito à Justiça Estadual, este enfrentou
conflito negativo de competência entre uma das Varas de Sucessões e Registros
Públicos e uma das Varas Cíveis, sendo, por fim, estabelecida a competência da
32ª Vara Cível da Capital (id. 4058300.11821997), onde teve regular
prosseguimento (processo nº 001.2003.18172-1).
Naquele Juízo foi concedido o benefício da
gratuidade da justiça à Parte Autora; realizadas audiências com oitivas de
testemunhas (id. 4058300.11822001). Os Réus EDVANDO MORENO GOES e
EDVALDO MORENO GOES apresentaram contestação (id. 4058300.11822004)
e juntaram documentos. A Parte Autora e referidos Réus apresentaram razões
finais (id. 4058300.11822020 e 4058300.11822022).
O Ministério Público do Estado de Pernambuco
ofertou r. parecer (id. 4058300.11822026).
Oficiada, a UNIÃO peticionou (id.
4058300.11822036), alegando que o imóvel em questão teria sido construído
sobre terreno de sua propriedade, esclarecendo que o terreno fora cedido, sob
regime de aforamento gratuito, ao Município do Recife, ainda não registrado no
RGI, juntando documentos.
Considerando o interesse da UNIÃO, foi determinada
a remessa dos autos a esta Justiça Federal (id. 4058300.11822038).
Certificada a reativação deste feito na Justiça
Federal (id. 4058300.11822046).
Decisão proferida em 13/06/2014 (id.
4058300.11822046), na qual foi decretada a revelia da União, sem os
respectivos efeitos; determinada a remessa dos autos ao MPF para a devida
apuração das responsabilidades do Servidor que assinou o documento id.
4058300.11822036; e intimação da Parte Autora para indicar o Município do
Recife para o polo passivo, como litisconsorte necessário, e requerer sua
citação.
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL noticiou a extração de
cópia de peças dos autos para distribuição, no âmbito do GOCC, para apurar
responsabilidade, no campo administrativo (improbidade) e criminal (id.
4058300.11822050).
A Parte Autora apresentou manifestação (id.
4058300.11822047).
Despacho no qual foi deferido o pedido da Parte
Autora para que fossem oficiadas a Fazenda Municipal e da Gerência de
Regularização Fundiária da Secretaria de Habitação e também a Secretaria de Patrimônio
da UNIÃO, para que prestem informações acerca do Contrato de Cessão sob o
Regime de Aforamento Gratuito, do imóvel, terreno acrescido de marinha
referente à área denominada "Entra Apulso" (id. 4058300.11822057).
Oficiados, o Município do Recife (id.
4058300.11822060) e a SPU (id. 4058300.11822061) apresentaram
manifestação.
Despacho no qual foi determinada a intimação da
Parte Autora para indicar o Município do Recife para o polo passivo, como
litisconsorte necessário, conforme já determinado na decisão supra (id.
4058300.11822063).
Certificado decurso de prazo sem manifestação da
Parte Autora (id. 4058300.11822063).
Determinada a intimação pessoal da Parte Autora
para cumprimento do despacho supra, sob pena de extinção do feito (id.
4058300.11822065).
A Parte Autora ingressou com petição (id.
4058300.11822067), na qual indica o Município do Recife como litisconsorte
passivo necessário, juntando substabelecimento e requerendo que todas as
publicações sejam exclusivamente feitas em nome do advogado Dr. Renan Resende
da Cunha Castro (OAB/PE 31.910).
Determinada a citação do Município do Recife para
os fins legais (id. 4058300.11822068).
O MUNICÍPIO DO RECIFE apresentou contestação (id.
4058300.11822073), pugnando, ao final, seja o presente processo extinto sem
resolução do mérito. Juntou documentos.
Intimada para se manifestar sobre a petição do
Município do Recife, a Parte Autora quedou-se silente, conforme certificado nos
autos (id. 4058300.11822076).
Decisão proferida em 07/03/2018 (id.
4058300.11822083), na qual foram convalidados os atos praticados pelo d.
Juiz de Direito da 32ª Vara Cível da Capital; se determinou que a Secretaria
procedesse à anotação dos nomes dos Advogados dos Réus EDVANDO MORENO GÓIS e
EDVALDO MORENO GÓES, que apresentaram contestação, e a respectiva intimação de
todos os atos processuais; remessa dos autos à Distribuição para inclusão do
MUNICÍPIO DO RECIFE como litisconsorte necessário; intimação das partes sobre a
produção de novas provas; bem como abertura de vista ao Ministério
Público Federal.
O MUNICÍPIO DO RECIFE informou que não tem provas a
produzir (id. 4058300.11822096).
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofertou seu r.
parecer, no qual esclarece que "deixa de se manifestar neste feito, sem
prejuízo de que esse entendimento seja revisto em face de fato superveniente
que torne necessária a sua intervenção" (id. 4058300.11822098).
Despacho no qual se determinou que a Secretaria
certificasse se foram citados por Edital os possíveis interessados na presente
ação e se decorreu o prazo para manifestação, devendo também ser certificado se
a Fazenda Pública Estadual foi notificada para ciência desta ação, e se esta se
pronunciou nos autos, conforme requerido pela Autora; se determinou que a
Secretaria certificasse ainda se houve pronunciamento dos Réus EDVANDO e
EDVALDO MORENO GOES; bem como a abertura de vista à UNIÃO para manifestação acerca
do requerido pela Parte Autora. Após, viessem os autos conclusos para
julgamento (id. 4058300.11822103).
Em cumprimento à decisão supra, foi certificado
pela Secretaria desta 2ª Vara: "...CERTIFICO que os Réus, VAN HORVEN
PERREIRA VELOSO, LÍGIA DA PAUMA VELOSO e MIKAEL EL JAIME, citados por Edital,
não apresentaram Contestação atá a presente data. CERTIFICO que os Réus,
EDVANDRO MORENO GOES e EDVALDO MORENO GOES, citados por edital, apresentaram
CONTESTAÇÃO às fls. 125/132. CERTIFICO que a UNIÃO FEDERAL foi citada à fl. 42v
e restou declarada a sua revelia na r. decisão de fl. 350v, alínea
"a". CERTIFICO que o MUNICÍPIO DO RECIFE apresentou
CONTESTAÇÃO às fIs. 396/397. CERTIFICO que até a presente data não consta dos
autos manifestação do confinante posseiro, senhor PEDRO JOAQUIM DA SILVA.
CERTIFICO, ao final, que no Edital de fls. 35/36 também restou consignada a
citação dos "terceiros possíveis interessados, ausentes incertos e
desconhecidos", os quais, não consta, até a presente data, manifestação
nos autos. CERTIFICO que a FAZENDA ESTADUAL foi intimada para manifestar
interesse nos autos (fl. 43v), mas, até a presente data, não consta
manifestação nos autos..." (id. 4058300.11822103).
A UNIÃO apresentou manifestação, na qual esclarece
a situação do Contrato de Cessão realizado com o Município do Recife (id.
4058300.11822110).
Ato ordinatório no qual foi a Parte Autora intimada
para manifestação (id. 4058300.11822105).
Em cumprimento à Resolução Pleno nº 3, de 21 de
março de 2018, foi procedida à migração dos autos físicos para o sistema de
Processo Judicial Eletrônico - PJe (id. 4058300.11872744).
Ato ordinatório no qual foram as partes intimadas
da migração do processo para o PJe (id. 4058300.11904515).
Apenas a UNIÃO manifestou ciência nos autos da digitalização
do processo (id. 4058300.11995311).
Vieram os autos conclusos.
É o relatório, no essencial.
Passo a decidir.
2 - Fundamentação
2.1 - O feito comporta julgamento antecipado, nos
termos do art. 355, inciso I, do Código de Processo Civil, uma vez que não há
necessidade de produção outras provas além das que já constam dos autos.
2.2 - Das preliminares suscitadas pelos Réus
EDVANDO e EDVALDO MORENO GOES (id. 4058300.11822004)
2.2.1 - Da nulidade de citação
Registre-se que a preliminar de nulidade de citação
por edital, suscitada pelos Réus Edvaldo e Edvando Moreno Goes não deve
prosperar, haja vista que o comparecimento à audiência e a apresentação de
contestação sanaram a nulidade por eles apontada, conforme o disposto no
parágrafo único, do art. 239, do CPC:
"Art. 239. Para a validade do processo é
indispensável a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses de
indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido.
§ 1º O comparecimento espontâneo do réu ou do
executado supre a falta ou a nulidade da citação, fluindo a partir desta data o
prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução."
Logo, não merece acolhida tal preliminar.
2.2.2 - Da litigância de má-fé
A alegada litigância de má-fé da Autora, levantada
pelos referidos Réus, também não merece acolhida, porque não devidamente
demonstrada nos autos (art. 80, do CPC).
2.2.3 - Da conexão com a Ação Reivindicatória nº
0002984-10.2000.4.05.8300
Suscitaram os referidos Réus a preliminar de
conexão do presente feito com a ação reivindicatória nº
0002984-10.2000.4.05.8300, proposta pelos ora Réus Edvaldo e Edvando Moreno
Goes contra vários possuidores, entre os quais a ora Autora, cujo feito
tramitou perante a 1ª Vara Federal/PE.
Em consulta aos sites da JFPE e do TRF-5ª
Região[1], pude constatar que o v.
acórdão, que manteve a r. sentença de improcedência, transitou em julgado.
Assim, resta prejudicada tal preliminar.
2.2.4 - Da inépcia da inicial
No que concerne à preliminar de inépcia da petição
inicial pela impossibilidade jurídica do pedido, levantada pelos referidos Réus
em sua contestação, tenho por prejudicada, porque não mais prevista como uma
das condições da ação no novo Código de Processo Civil, conforme se extrai do §
1º do seu art. 330 (correspondente ao Parágrafo Único do art. 295 do revogado
CPC), onde não mais figura como caso de inépcia da petição inicial.
Ademais, a questão lançada nesta preliminar
confunde-se com o próprio mérito da causa e será apreciada a seguir.
2.3 Do mérito
2.3.1 Usucapião é forma originária de
aquisição da propriedade que se implementa pelo decurso de prazo temporal e
pelo qualificado animus domini, além de outros requisitos legais
específicos.
No caso dos autos, trata-se de usucapião especial
urbana prevista no art. 183 da CF/1988, reproduzido no art. 9º do Estatuto da
Cidade (Lei nº 10.257/2001) e no art. 1.240, do Código Civil, in verbis:
"Art. 183. Aquele que possuir como sua área
urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua
família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão
conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo
possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por
usucapião."
Depreende-se da leitura do dispositivo supra os
pressupostos da posse hábil para a usucapião especial urbana: a) posse
mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini; b) prazo reduzido de
5 (cinco) anos; c) limitação de área urbana (até 250 m2);
d) utilização do imóvel vinculada à moradia do possuidor e/ou de sua
família; d) não ser proprietário de outro imóvel rural ou urbano; e)
a propriedade por usucapião especial será reconhecida uma única vez; e f)
vedação à aquisição de imóveis públicos por usucapião.
2.3.2 - Pretende a Autora usucapir o domínio útil
do imóvel situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa Viagem,
Recife/PE (edificado em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do
Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE).
No caso sob análise, alega a Autora que detém, há
mais de 20 (vinte) anos, a posse mansa, pacífica, de forma contínua e
ininterrupta, com animus domini, sobre o imóvel usucapiendo.
Narra que o imóvel descrito nos autos tem uma área
total de 56,73 m2, edificado entre os lotes 12 e 13, da Quadra K, do
referido Loteamento Sítio do Meio, no bairro de Boa Viagem, Recife/PE, na
comunidade denominada "Entra Apulso".
Esclarece que a área de terreno onde o
imóvel foi construído encontra-se situada em uma Zona Especial de Interesse
Social - ZEIS[2], assim constituída pela Lei de
Uso e Ocupação do Solo do Recife (Lei municipal nº 14.511/1983).
Pois bem.
O art. 20 da Constituição Federal estabelece,
expressamente, que os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União:
"Art. 20. São bens da União:
(...)
VII - os terrenos de marinha e seus
acrescidos;"
A matéria, inclusive, é sumulada pelo Supremo
Tribunal Federal (Súmula 340 do STF):
"Desde a vigência do Código Civil os bens
dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por
usucapião."
Da mesma forma, dispõe o art. 200 do Decreto-Lei n
º 9.760/46:
"Art. 200. Os bens imóveis da União, seja qual
fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião."
Por sua vez, os institutos de aforamento e
ocupação são disciplinados pelo Decreto-Lei nº 9.760/46, sendo que o
aforamento(enfiteuse de imóvel público) (arts. 99-124) tem caráter de
perpetuidade, enquanto a ocupação (arts. 127-133) tem natureza
precária/temporária.
2.3.3 - Sobre a possibilidade de aquisição do domínio
útil de bens públicos, via ação de usucapião, a jurisprudência pátria
firmou-se no sentido de que é possível tal aquisição, desde que se trate do
domínio útil de terreno de marinha e acrescido de marinha submetido a regime
de aforamento, que equivale à antiga enfiteuse do Código Civil de 1916,
hoje revogado no campo privado.
Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 5ª
Região já se manifestou, inclusive, com a edição da Súmula 17, in verbis:
"É possível a aquisição do domínio útil de
bens públicos em regime de aforamento, via usucapião, desde que a ação seja
movida contra particular, até então enfiteuta, contra quem operar-se-á a
prescrição aquisitiva, sem atingir o domínio direto da União."
No aforamento(enfiteuse), o Beneficiário(aforador
ou enfiteuta tem uma parcela do domínio, que é o domínio útil.
Já no regime de ocupação, o Beneficiário, mero ocupante, não
tem domínio útil, mas apenas a posse precária, de sorte que a União se mantém
com o domínio pleno do terreno de marinha, inviabilizando o pleito de
usucapião.
2.3.4 - No caso dos autos, em que pese o
considerável atraso no andamento do feito provocado pelo "engano" da
UNIÃO, dizendo que não teria interesse na demanda porque o terreno não seria de
sua propriedade, conforme se extrai do relatório supra, ainda na Justiça
Estadual alegou o ente federal que o imóvel em questão teria sido construído sobre
terreno de sua propriedade, submetido a regime de aforamento, cedido,
gratuitamente, ao Município do Recife, o que fez os autos regressarem a esta
Justiça Federal, por incompetência absoluta daquele Juízo Estadual.
Segundo ofício emitido pela Secretaria do
Patrimônio da União - SPU (Ofício nº 0496/2013 SPU/PE/MP), juntado pela UNIÃO,
restou demonstrado que o imóvel em discussão constitui terreno acrescido de
marinha, sendo informado ainda que os lotes citados (12 e 13 do Loteamento
Sítio do Meio) fazem parte de cessão, sob regime de aforamento gratuito,
ao Município do Recife (id. 4058300.11822036):
"(...)
Entretanto conforme nossa base cartográfica, o
imóvel situado na Rua Visconde de Jequitinhonha Nº 55 encontra-se
edificado em parte dos lotes 12 e 13 do loteamento SÍTIO DO MEIO com natureza
Acrescido de Marinha.
Esclarecemos também que os lotes citados fazem
parte de cessão sob regime de Aforamento Gratuito ao Município do Recife ainda
não registrado no RGI.
Segue cópia do Contrato de Cessão sob o Regime de
Aforamento Gratuito."
Do mencionado Contrato de Cessão sob o Regime de
Aforamento Gratuito, celebrado entre a União e o Município do Recife em
29/08/2003 (id. 4058300.11822036), extrai-se que o imóvel usucapiendo
está localizado na comunidade denominada "Entra Apulso", com área
total de 29.206,05 m², inserida nos loteamentos "Sítio do Meio" e
"Jardim Continental", no bairro de Boa Viagem, Recife/PE, conforme
processo administrativo nº 05014.000972/200340.
Consta do citado contrato de cessão de aforamento
gratuito que o Município Cessionário, ora Réu, se obriga a providenciar as
alterações cadastrais referentes ao domínio útil das unidades imobiliárias
incluídas no contrato de cessão junto à SPU/GRPU:
"Art. 3º Fica o cessionário obrigado a: I- ...
II - fornecer à Gerência Regional de Patrimônio da União no Estado do
Pernambuco os dados cadastrais e peças técnicas dos desmembramentos e
transferências de domínio útil efetivados; III- -transferir,
independentemente do pagamento do valor correspondente, o domínio útil de
frações do imóvel cedido aos ocupantes caracterizados como carentes ou de
baixa renda, na forma da lei, bem como àqueles que vierem a ser assentados
de acordo com o caráter social do empreendimento, limitado a uma unidade
imobiliária por família; IV- Os adquirentes do domínio útil de frações da
área cedida, que comprovarem, perante a Gerência Regional de Patrimônio da
União no Estado do Pernambuco - GRPU/PE, a condição de carentes, ficarão
isentos do pagamento de foros, conforme disposições do Decreto nº 1.466, de 26
de abril de 1995, e do art. 17 do Decreto nº 3.725, de 10 de janeiro do
2001. "
Note-se que referido contrato de cessão de
aforamento gratuito, celebrado com vistas a proceder à regularização fundiária
dos moradores de baixa renda da comunidade "Entra Apulso", ainda não
foi implementado pelos Réus União e Município do Recife, conforme ofícios
remetidos, em resposta a este Juízo, pela SPU (Ofício SEI 0 11416/2015-MP - id.
4058300.11822061) e pela Secretaria de Habitação do Recife (Ofício. nº
3/2O15 GAB/SEHAB - id. 4058300.11822060).
Registro ainda que Ação Reivindicatória nº
0002984-10.2000.4.05.8300 (1ª Vara Federal/PE), proposta pelos ora Réus Edvaldo
e Edvando Moreno Goes contra vários possuidores que construíram seus imóveis no
Lote 12, do Loteamento "Sítio do Meio", entre os quais a ora Autora,
foi julgada improcedente, cujo v. acórdão transitado em julgado restou assim
ementado:
"ADMINISTRATIVO. AÇÃO REIVINDICATÓRIA.
APELAÇÃO. BEM IMÓVEL ADQUIRIDO EM 1980. ÁREA INSERIDA EM ZONA ESPECIAL DE
INTERESSE SOCIAL - ZEIS. CONTRATO DE CESSÃO SOB REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO.
A UNIÃO FEDERAL (CEDENTE) CEDEU A ÁREA PARA O MUNICÍPIO DO RECIFE
(CESSIONÁRIO). IMPLANTAÇÃO DE ÁREA DE URBANIZAÇÃO E REGULARIZAÇAO FUNDIÁRIA DAS
FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA QUE OCUPAVAM A REFERIDA ÁREA. DESTINAÇÃO SOCIAL.
CONSTATAÇÃO DE QUE OS AUTORES NUNCA DETIVERAM A POSSE DO IMÓVEL OBJETO DOS
AUTOS. HIPÓTESE DE ABANDONO DE POSSE. SENTENÇA MANTIDA.
1. A sentença recorrida julgou a ação
improcedente, tendo em vista a destinação social dada à área em que está
localizado o imóvel objeto dos autos, e, ainda, a constatação do abandono da
posse, nos termos da sentença de fls. 366/379.
2. Os autores alegam ter adquirido o imóvel da Sra.
Virgínia da Cruz Lapa, em 2.03.19880; que estão pagando regularmente o IPTU e
foro incidentes no referido imóvel; que sempre cuidaram do estado de
conservação do imóvel; que o imóvel foi invadido; que logo em seguida teriam
promovido ação de reintegração de posse; que a matéria pertinente ao pagamento
dos impostos e foro não foi apreciada pela sentença, e que, em caso de
improcedência a responsabilidade pelos pagamentos dos foros deveria ser
transferida para os detentores atuais da posse; que não se revela justo pagarem
os impostos devidos e não usufruírem da posse do imóvel descrito na p.
3. A referida área encontra-se localizada nas
proximidades do Shopping Center Recife, tendo sido objeto de CONTRATO DE CESSÃO
SOB O REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO, em que a UNIÃO FEDERAL figura como cedente
e a MUNICÍPIO DO RECIFE como cessionário.
4. Os demandantes não chegaram seque a ocupar os
referidos imóveis desde a sua aquisição, razão porque não podem ser
beneficiados com o ato de cessão em favor do Município do Recife.
5. A sentença recorrida esclareceu, de forma
pormenorizada, a desídia dos autores da ação na recuperação da posse do imóvel,
constatando, ainda, a hipótese de abandono de posse disciplinada pelos
arts. 103, V, e 105, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 9.760/46, com a redação
dada pela Lei nº 11.481/2007).
6. No que concerne aos pagamentos de foro que os
demandantes alegam estar efetivando, o respectivo ressarcimento apenas poderá
ser admitido através do ajuizamento de ação própria, vez que a presente demanda
restringe-se apenas à reivindicação de bem imóvel que não mais se encontra na
posse dos autores desde o ano de 1987.
7. Apelação improvida.
(PROCESSO: 200083000029841, APELAÇÃO CIVEL,
DESEMBARGADOR FEDERAL MANOEL ERHARDT, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 25/04/2013,
PUBLICAÇÃO: 02/05/2013)" (G.N.)
No caso concreto, portanto, considerando todo o
conjunto probatório dos autos, tenho que se encontram visíveis, na posse da
Autora, todos os característicos de posse mansa e pacífica, com animus
domini, a autorizar o deferimento do domínio útil por usucapião do imóvel
descrito nos autos, com uma área total de 56,73 m2 (id.
4058300.11821944), situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa
Viagem, Recife/PE (edificado em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K,
do Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE), na comunidade denominada
"Entra Apulso".
Ademais, não há nenhum indício nos autos de que a
ora Autora seja proprietária de outro imóvel, havendo sim indícios de que
realmente não é proprietária de nenhum outro imóvel, conforme declara nos autos
(id. 4058300.11821944).
Desse modo, o imóvel em apreço, como visto, é
conceituado como terreno acrescido de marinha, em regime de aforamento,
conforme Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito, em que a UNIÃO
figura como cedente e o MUNICÍPIO DO RECIFE como cessionário, o que possibilita
a aquisição de domínio útil mediante ação de usucapião.
2.4 Da verba sucumbencial
Suportará o pagamento das verbas de sucumbência os
Réus Edvaldo Moreno Goes e Edvando Moreno Goes, titulares do domínio útil do
lote 12 da quadra K, do Loteamento "Sítio do Meio", que ofertaram
resistência à pretensão da Autora, a UNIÃO e o MUNICÍPIO DO RECIFE, que ficarão
obrigados a regularizar o aforamento no nome da Autora, conforme veremos na conclusão
infra.
Ficam excluídos da obrigação sucumbencial os demais
Réus e confinantes, porque não ofertaram resistência ao pleito autoral.
3. Dispositivo
Posto isso:
3.1 - Rejeito as preliminares de nulidade da
citação e litigância de má-fé suscitadas pelos Réus Edvaldo Moreno Goes e
Edvando Moreno Goes.
3.2 - Restam prejudicadas as preliminares de
conexão e inépcia da inicial levantadas pelos referidos Réus Edvaldo Moreno
Goes e Edvando Moreno Goes.
3.3 - Julgo procedentes os pedidos desta
ação de usucapião e declaro que a ora Autora é a titular do domínio útil do
terreno acrescido de marinha onde se encontra edificada sua residência,
localizada na Rua Visconde de Jequitinhonha, nº 55, Boa Viagem, Recife/PE
(edificada em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento
Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE), e condeno os Réus UNIÃO e MUNICÍPIO DO
RECIFE a regularizarem o respectivo aforamento em nome da ora Autora e que o
façam no prazo de 60(sessenta) dias, contados do dia seguinte à data do
trânsito em julgado, concretizando o registro no Sistema Integrado de
Administração Patrimonial - SIAPA - SPU, bem como nos cadastros do Município
Cessionário, nos termos do noticiado Contrato de Cessão sob o Regime de
Aforamento Gratuito, e no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, para
todos os fins de direito, sob pena de pagamento de multa mensal, à ora Autora,
no valor de R$ 1.500,00 (hum mil e quinhentos reais), pro rata,
atualizados a partir do mês seguinte ao da publicação desta sentença, pelos
índices de correção monetária do Manual de Cálculos do Conselho da Justiça
Federal, sem prejuízo da responsabilização pessoal dos Servidores e ou
respectivas Chefias que deram azo ao pagamento dessa multa, no campo
administrativo, civil e criminal.
3.4 - Outrossim, condeno os Réus EDVALDO MORENO
GOES, EDVANDO MORENO GOES, UNIÃO e MUNICÍPIO DO RECIFE em honorários
advocatícios, os quais, considerando que o valor da condenação não se mostra
capaz de servir como base de cálculo adequada, fixo em R$ 2.000,00
(dois mil reais), nos termos do parágrafo 8º do art. 85, do CPC, pro rata,
com atualização pelos índices do manual de cálculos do Conselho da Justiça
Federal.
3.5 - Finalmente, dou o processo por extinto, com
resolução do mérito (art. 487, I, CPC).
3.6 - Sentença sujeita ao reexame necessário (art.
496, I, do CPC).
Custas ex lege.
Registre-se. Intimem-se.
Recife/PE,
05.03.2021.
Francisco
Alves dos Santos Júnior
Juiz
Federal, 2ª Vara da JFPE
(mppl)
[1] https://cp.trf5.jus.br/processo/0002984-10.2000.4.05.8300
[2] "As Zonas Especiais de
Interesse Social-ZEIS são áreas de assentamentos habitacionais de população de
baixa renda, surgidos espontaneamente, existentes, consolidados ou propostos
pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e regularização
fundiária e construção de habitação de interesse social."
Disponível
no site da Prefeitura do Município do Recife:
https://licenciamento.recife.pe.gov.br/node/921