sábado, 6 de março de 2021

"ENTRA A PULSO", UMA LUTA SEM FIM. USUCAPIÃO DO DOMÍNIO ÚTIL. TERRENO DE MARINHA AFORADO.

 Por Francisco Alves dos Santos Júnior

 

A comunidade "Entra a Pulso" fica numa área muito valorizada da cidade do Recife, tendo por vizinho mais famoso o Shopping Center Recife. Pois bem,  essa comunidade adveio de ocupação de terreno acrescido de marinha por pessoas carentes,  quando a região ainda era um alagado. Como se sabe, terreno de marinha ou acrescido de marinha é de propriedade da UNIÃO. Lá pelo deste século, UNIÃO aforou todo o terreno para o Município do Recife. Então, algumas pessoas que ocupam o lugar há muitos anos propuseram ação de usucapião do domínio útil contra a UNIÃO e contra o MUNICÍPIO DO RECIFE. Na sentença abaixo, julga-se uma dessas ações. 

Boa leitura. 



Obs.: sentença pesquisada e minutada pela Assessora Maria Patrícia Pessoa de Luna. 




PROCESSO Nº: 0009837-35.2000.4.05.8300 - USUCAPIÃO

AUTOR: MARIA LEOPOLDINA DA SILVA
ADVOGADO: Renan Resende Da Cunha Castro e outro
RÉU: UNIÃO FEDERAL - UNIÃO. e outros
ADVOGADO: Larissa Rangel Wanderley e outro
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
  

 

Sentença Tipo A, registrada eletronicamente

 

EMENTA:- USUCAPIÃO. TERRENO ACRESCIDO DE MARINHA. DOMÍNIO ÚTIL. CONTRATO DE CESSÃO SOB O REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO.

- A UNIÃO cedeu a área onde está edificado o imóvel usucapiendo para o MUNICÍPIO DO RECIFE (cessionário), com vistas a proceder à regularização fundiária dos moradores de baixa renda da comunidade denominada "Entra Apulso".

- Terreno acrescido de marinha, sob regime de aforamento, pode o respectivo domínio útil ser objeto de usucapião (Súmula 17 do TRF/5ªR).

Procedência. 

Vistos etc.

1. Relatório

MARIA LEOPOLDINA DA SILVA, qualificada na petição inicial, propôs, em 02/06/2000, esta "AÇÃO DE USUCAPIÃO " contra VAN HOVER FERREIRA VELOSO, LIGIA DA PAUMA VELOSO, MIKAEL EL JAIME, EDVANDO MORENO GOES, EDVALDO MORENO GOES e UNIÃO, objetivando a declaração de domínio útil da Autora sobre o imóvel descrito na inicial, situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa Viagem, Recife/PE (parte da gleba do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE). Alegou, em síntese, que: residiria no imóvel situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa, Viagem, Recife/PE, por lapso temporal superior a 05 (cinco) anos, exercendo, em relação ao referido bem, posse mansa, pacífica, ininterrupta e com ânimo de dono durante toda a extensão do aludido período; a área de terreno usucapienda se encontrava abandonada, não afetada por eventual proprietário a qualquer destinação específica, somente lhe sendo atribuída função social pelos demandantes, quando nela teriam edificado acessão e passado a residir; o imóvel objeto da presente ação de usucapião possuiria área inferior a 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados); a propriedade do terreno seria da União Federal (terreno de marinha), havendo aforamento estabelecido em favor do suplicado, conforme certidão de propriedade exarada pelo Registro Geral de Imóveis desta Capital; pretenderiam os requerentes, dada a impossibilidade de adquirir o domínio pleno do imóvel em tela, usucapir o domínio útil referente àquele imóvel, ou seja, extinguir a relação de aforamento existente entre a União e o suplicado e, ao mesmo tempo, criar novo aforamento, entre  suplicantes e União; os autores preencheriam todos os requisitos constitucionais estabelecidos no art. 183, pois exerceriam posse em relação a imóvel com área inferior a 250m2, por lapso temporal superior a 05 (cinco) anos, de forma mansa, pacífica e ininterrupta, com ânimo de enfiteuta e utilizando-o exclusivamente para sua moradia, tornando-se assim hábeis a adquirir o domínio útil da área acima descrita. Teceu outros comentários. Transcreveu dispositivos constitucionais e legais. Requereu, ao final: a) a citação por edital de VAN HORVEN FERREIRA VELOSO e sua esposa, LIGIA DA PAUMA VELOSO, MIKAEL EL JAIME, EDVANDO MORENO GOES E EDVALDO MORENO GOES; b) a citação por mandado da UNIÃO e dos confinantes posseiros; c) cientificação dos representantes legais das Fazendas Públicas Federal, Estadual e Municipal, para que manifestem interesse na presente ação; d) a concessão do benefício da justiça gratuita; e) seja julgado o presente feito procedente em todos os seus termos, declarando-se, por sentença, o domínio útil dos suplicantes sobre a área usucapienda. Deu valor à causa. Protestou o de estilo. Inicial instruída com procuração e documentos.

Distribuída originariamente para esta Justiça Federal, em 02/06/2000, foi declinada a competência para a Justiça Estadual (id. 4058300.11821967), porque a UNIÃO peticionou nos autos, petição protocolada em 08/08/2001, instruída com documento, dizendo não ter interesse na demanda (id. 4058300.11821965).

Remetido o feito à Justiça Estadual, este enfrentou conflito negativo de competência entre uma das Varas de Sucessões e Registros Públicos e uma das Varas Cíveis, sendo, por fim, estabelecida a competência da 32ª Vara Cível da Capital (id. 4058300.11821997), onde teve regular prosseguimento (processo nº 001.2003.18172-1).

Naquele Juízo foi concedido o benefício da gratuidade da justiça à Parte Autora; realizadas audiências com oitivas de testemunhas (id. 4058300.11822001). Os Réus EDVANDO MORENO GOES e EDVALDO MORENO GOES apresentaram contestação (id. 4058300.11822004) e juntaram documentos. A Parte Autora e referidos Réus apresentaram razões finais (id. 4058300.11822020 e 4058300.11822022).

O Ministério Público do Estado de Pernambuco ofertou r. parecer (id. 4058300.11822026).

Oficiada, a UNIÃO peticionou (id. 4058300.11822036), alegando que o imóvel em questão teria sido construído sobre terreno de sua propriedade, esclarecendo que o terreno fora cedido, sob regime de aforamento gratuito, ao Município do Recife, ainda não registrado no RGI, juntando documentos.

Considerando o interesse da UNIÃO, foi determinada a remessa dos autos a esta Justiça Federal (id. 4058300.11822038).

Certificada a reativação deste feito na Justiça Federal (id. 4058300.11822046).

Decisão proferida em 13/06/2014 (id. 4058300.11822046), na qual foi decretada a revelia da União, sem os respectivos efeitos; determinada a remessa dos autos ao MPF para a devida apuração das responsabilidades do Servidor que assinou o documento id. 4058300.11822036; e intimação da Parte Autora para indicar o Município do Recife para o polo passivo, como litisconsorte necessário, e requerer sua citação.

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL noticiou a extração de cópia de peças dos autos para distribuição, no âmbito do GOCC, para apurar responsabilidade, no campo administrativo (improbidade) e criminal (id. 4058300.11822050).

A Parte Autora apresentou manifestação (id. 4058300.11822047).

Despacho no qual foi deferido o pedido da Parte Autora para que fossem oficiadas a Fazenda Municipal e da Gerência de Regularização Fundiária da Secretaria de Habitação e também a Secretaria de Patrimônio da UNIÃO, para que prestem informações acerca do Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito, do imóvel, terreno acrescido de marinha referente à área denominada "Entra Apulso" (id. 4058300.11822057).

Oficiados, o Município do Recife (id. 4058300.11822060) e a SPU (id. 4058300.11822061) apresentaram manifestação.

Despacho no qual foi determinada a intimação da Parte Autora para indicar o Município do Recife para o polo passivo, como litisconsorte necessário, conforme já determinado na decisão supra (id. 4058300.11822063).

Certificado decurso de prazo sem manifestação da Parte Autora (id. 4058300.11822063).

Determinada a intimação pessoal da Parte Autora para cumprimento do despacho supra, sob pena de extinção do feito (id. 4058300.11822065).

A Parte Autora ingressou com petição (id. 4058300.11822067), na qual indica o Município do Recife como litisconsorte passivo necessário, juntando substabelecimento e requerendo que todas as publicações sejam exclusivamente feitas em nome do advogado Dr. Renan Resende da Cunha Castro (OAB/PE 31.910).

Determinada a citação do Município do Recife para os fins legais (id. 4058300.11822068).

O MUNICÍPIO DO RECIFE apresentou contestação (id. 4058300.11822073), pugnando, ao final, seja o presente processo extinto sem resolução do mérito. Juntou documentos.

Intimada para se manifestar sobre a petição do Município do Recife, a Parte Autora quedou-se silente, conforme certificado nos autos (id. 4058300.11822076).

Decisão proferida em 07/03/2018 (id. 4058300.11822083), na qual foram convalidados os atos praticados pelo d. Juiz de Direito da 32ª Vara Cível da Capital; se determinou que a Secretaria procedesse à anotação dos nomes dos Advogados dos Réus EDVANDO MORENO GÓIS e EDVALDO MORENO GÓES, que apresentaram contestação, e a respectiva intimação de todos os atos processuais; remessa dos autos à Distribuição para inclusão do MUNICÍPIO DO RECIFE como litisconsorte necessário; intimação das partes sobre a produção de novas provas; bem como abertura de  vista ao Ministério Público Federal.

O MUNICÍPIO DO RECIFE informou que não tem provas a produzir (id. 4058300.11822096).

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ofertou seu r. parecer, no qual esclarece que "deixa de se manifestar neste feito, sem prejuízo de que esse entendimento seja revisto em face de fato superveniente que torne necessária a sua intervenção" (id. 4058300.11822098).

Despacho no qual se determinou que a Secretaria certificasse se foram citados por Edital os possíveis interessados na presente ação e se decorreu o prazo para manifestação, devendo também ser certificado se a Fazenda Pública Estadual foi notificada para ciência desta ação, e se esta se pronunciou nos autos, conforme requerido pela Autora; se determinou que a Secretaria certificasse ainda se houve pronunciamento dos Réus EDVANDO e EDVALDO MORENO GOES; bem como a abertura de vista à UNIÃO para manifestação acerca do requerido pela Parte Autora. Após, viessem os autos conclusos para julgamento (id. 4058300.11822103).

Em cumprimento à decisão supra, foi certificado pela Secretaria desta 2ª Vara: "...CERTIFICO que os Réus, VAN HORVEN PERREIRA VELOSO, LÍGIA DA PAUMA VELOSO e MIKAEL EL JAIME, citados por Edital, não apresentaram Contestação atá a presente data. CERTIFICO que os Réus, EDVANDRO MORENO GOES e EDVALDO MORENO GOES, citados por edital, apresentaram CONTESTAÇÃO às fls. 125/132. CERTIFICO que a UNIÃO FEDERAL foi citada à fl. 42v e restou declarada a sua revelia na r. decisão de fl. 350v, alínea "a". CERTIFICO que o MUNICÍPIO DO RECIFE apresentou CONTESTAÇÃO às fIs. 396/397. CERTIFICO que até a presente data não consta dos autos manifestação do confinante posseiro, senhor PEDRO JOAQUIM DA SILVA. CERTIFICO, ao final, que no Edital de fls. 35/36 também restou consignada a citação dos "terceiros possíveis interessados, ausentes incertos e desconhecidos", os quais, não consta, até a presente data, manifestação nos autos. CERTIFICO que a FAZENDA ESTADUAL foi intimada para manifestar interesse nos autos (fl. 43v), mas, até a presente data, não consta manifestação nos autos..." (id. 4058300.11822103).

A UNIÃO apresentou manifestação, na qual esclarece a situação do Contrato de Cessão realizado com o Município do Recife (id. 4058300.11822110).

Ato ordinatório no qual foi a Parte Autora intimada para manifestação (id. 4058300.11822105).

Em cumprimento à Resolução Pleno nº 3, de 21 de março de 2018, foi procedida à migração dos autos físicos para o sistema de Processo Judicial Eletrônico - PJe (id. 4058300.11872744).

Ato ordinatório no qual foram as partes intimadas da migração do processo para o PJe (id. 4058300.11904515).

Apenas a UNIÃO manifestou ciência nos autos da digitalização do processo (id. 4058300.11995311).

Vieram os autos conclusos.

É o relatório, no essencial.

Passo a decidir.

2 - Fundamentação

2.1 - O feito comporta julgamento antecipado, nos termos do art. 355, inciso I, do Código de Processo Civil, uma vez que não há necessidade de produção outras provas além das que já constam dos autos.

2.2 - Das preliminares suscitadas pelos Réus EDVANDO e EDVALDO MORENO GOES (id. 4058300.11822004)

2.2.1 - Da nulidade de citação

Registre-se que a preliminar de nulidade de citação por edital, suscitada pelos Réus Edvaldo e Edvando Moreno Goes não deve prosperar, haja vista que o comparecimento à audiência e a apresentação de contestação sanaram a nulidade por eles apontada, conforme o disposto no parágrafo único, do art. 239, do CPC:

"Art. 239. Para a validade do processo é indispensável a citação do réu ou do executado, ressalvadas as hipóteses de indeferimento da petição inicial ou de improcedência liminar do pedido.

§ 1º O comparecimento espontâneo do réu ou do executado supre a falta ou a nulidade da citação, fluindo a partir desta data o prazo para apresentação de contestação ou de embargos à execução."

Logo, não merece acolhida tal preliminar.

2.2.2 - Da litigância de má-fé

A alegada litigância de má-fé da Autora, levantada pelos referidos Réus, também não merece acolhida, porque não devidamente demonstrada nos autos (art. 80, do CPC).

2.2.3 - Da conexão com a Ação Reivindicatória nº 0002984-10.2000.4.05.8300

Suscitaram os referidos Réus a preliminar de conexão do presente feito com a ação reivindicatória nº 0002984-10.2000.4.05.8300, proposta pelos ora Réus Edvaldo e Edvando Moreno Goes contra vários possuidores, entre os quais a ora Autora, cujo feito tramitou perante a 1ª Vara Federal/PE.

Em consulta aos sites da JFPE e do TRF-5ª Região[1], pude constatar que o v. acórdão, que manteve a r. sentença de improcedência, transitou em julgado.

Assim, resta prejudicada tal preliminar.

2.2.4 - Da inépcia da inicial

No que concerne à preliminar de inépcia da petição inicial pela impossibilidade jurídica do pedido, levantada pelos referidos Réus em sua contestação, tenho por prejudicada, porque não mais prevista como uma das condições da ação no novo Código de Processo Civil, conforme se extrai do § 1º do seu art. 330 (correspondente ao Parágrafo Único do art. 295 do revogado CPC), onde não mais figura como caso de inépcia da petição inicial.

Ademais, a questão lançada nesta preliminar confunde-se com o próprio mérito da causa e será apreciada a seguir.

2.3 Do mérito

2.3.1 Usucapião é forma originária de aquisição da propriedade que se implementa pelo decurso de prazo temporal e pelo qualificado animus domini, além de outros requisitos legais específicos.

No caso dos autos, trata-se de usucapião especial urbana prevista no art. 183 da CF/1988, reproduzido no art. 9º do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e no art. 1.240, do Código Civil, in verbis:

"Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.

§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião."

Depreende-se da leitura do dispositivo supra os pressupostos da posse hábil para a usucapião especial urbana: a) posse mansa, pacífica e ininterrupta com animus domini; b) prazo reduzido de 5 (cinco) anos; c) limitação de área urbana (até 250 m2); d) utilização do imóvel vinculada à moradia do possuidor e/ou de sua família; d) não ser proprietário de outro imóvel rural ou urbano; e) a propriedade por usucapião especial será reconhecida uma única vez; e f) vedação à aquisição de imóveis públicos por usucapião.

2.3.2 - Pretende a Autora usucapir o domínio útil do imóvel situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa Viagem, Recife/PE (edificado em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE).

No caso sob análise, alega a Autora que detém, há mais de 20 (vinte) anos, a posse mansa, pacífica, de forma contínua e ininterrupta, com animus domini, sobre o imóvel usucapiendo.

Narra que o imóvel descrito nos autos tem uma área total de 56,73 m2, edificado entre os lotes 12 e 13, da Quadra K, do referido Loteamento Sítio do Meio, no bairro de Boa Viagem, Recife/PE, na comunidade denominada "Entra Apulso".

Esclarece que a área de terreno onde o imóvel foi construído encontra-se situada em uma Zona Especial de Interesse Social - ZEIS[2], assim constituída pela Lei de Uso e Ocupação do Solo do Recife (Lei municipal nº 14.511/1983).

Pois bem.

O art. 20 da Constituição Federal estabelece, expressamente, que os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União:

"Art. 20. São bens da União:

(...)

VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;"

A matéria, inclusive, é sumulada pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula 340 do STF):

"Desde a vigência do Código Civil os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião."

Da mesma forma, dispõe o art. 200 do Decreto-Lei n º 9.760/46:

"Art. 200. Os bens imóveis da União, seja qual fôr a sua natureza, não são sujeitos a usucapião."

Por sua vez,  os institutos de aforamento e ocupação são disciplinados pelo Decreto-Lei nº 9.760/46, sendo que o aforamento(enfiteuse de imóvel público) (arts. 99-124) tem caráter de perpetuidade, enquanto a ocupação (arts. 127-133) tem natureza precária/temporária.

2.3.3 - Sobre a possibilidade de aquisição do domínio útil de bens públicos, via ação de usucapião, a jurisprudência pátria firmou-se no sentido de que é possível tal aquisição, desde que se trate do domínio útil de terreno de marinha e acrescido de marinha submetido a regime de aforamento, que equivale à antiga enfiteuse do Código Civil de 1916, hoje revogado no campo privado.

Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região já se manifestou, inclusive, com a edição da Súmula 17, in verbis:

"É possível a aquisição do domínio útil de bens públicos em regime de aforamento, via usucapião, desde que a ação seja movida contra particular, até então enfiteuta, contra quem operar-se-á a prescrição aquisitiva, sem atingir o domínio direto da União."

No aforamento(enfiteuse), o Beneficiário(aforador ou enfiteuta tem uma parcela do domínio, que é o domínio útil.

Já no regime de ocupação, o Beneficiário, mero ocupante, não tem domínio útil, mas apenas a posse precária, de sorte que a União se mantém com o domínio pleno do terreno de marinha, inviabilizando o pleito de usucapião.

2.3.4 - No caso dos autos, em que pese o considerável atraso no andamento do feito provocado pelo "engano" da UNIÃO, dizendo que não teria interesse na demanda porque o terreno não seria de sua propriedade, conforme se extrai do relatório supra, ainda na Justiça Estadual alegou o ente federal que o imóvel em questão teria sido construído sobre terreno de sua propriedade, submetido a regime de aforamento, cedido, gratuitamente, ao Município do Recife, o que fez os autos regressarem a esta Justiça Federal, por incompetência absoluta daquele Juízo Estadual.

Segundo ofício emitido pela Secretaria do Patrimônio da União - SPU (Ofício nº 0496/2013 SPU/PE/MP), juntado pela UNIÃO, restou demonstrado que o imóvel em discussão constitui terreno acrescido de marinha, sendo informado ainda que os lotes citados (12 e 13 do Loteamento Sítio do Meio) fazem parte de cessão, sob regime de aforamento gratuito, ao Município do Recife (id. 4058300.11822036):

"(...)

Entretanto conforme nossa base cartográfica, o imóvel situado na Rua Visconde de Jequitinhonha Nº 55 encontra-se edificado em parte dos lotes 12 e 13 do loteamento SÍTIO DO MEIO com natureza Acrescido de Marinha.

Esclarecemos também que os lotes citados fazem parte de cessão sob regime de Aforamento Gratuito ao Município do Recife ainda não registrado no RGI.

Segue cópia do Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito."

Do mencionado Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito, celebrado entre a União e o Município do Recife em 29/08/2003 (id. 4058300.11822036), extrai-se que o imóvel usucapiendo está localizado na comunidade denominada "Entra Apulso", com área total de 29.206,05 m², inserida nos loteamentos "Sítio do Meio" e "Jardim Continental", no bairro de Boa Viagem, Recife/PE, conforme processo administrativo nº 05014.000972/200340.

Consta do citado contrato de cessão de aforamento gratuito que o Município Cessionário, ora Réu, se obriga a providenciar as alterações cadastrais referentes ao domínio útil das unidades imobiliárias incluídas no contrato de cessão junto à SPU/GRPU:

"Art. 3º Fica o cessionário obrigado a: I- ... II - fornecer à Gerência Regional de Patrimônio da União no Estado do Pernambuco os dados cadastrais e peças técnicas dos desmembramentos e transferências de domínio útil efetivados; III- -transferir, independentemente do pagamento do valor correspondente, o domínio útil de frações do imóvel  cedido aos ocupantes caracterizados como carentes ou de baixa renda, na forma da lei, bem como àqueles que vierem a ser assentados de acordo com o caráter social do empreendimento, limitado a uma unidade imobiliária por família; IV-  Os adquirentes do domínio útil de frações da área cedida, que comprovarem, perante a Gerência Regional de Patrimônio da União no Estado do Pernambuco - GRPU/PE, a condição de carentes, ficarão isentos do pagamento de foros, conforme disposições do Decreto nº 1.466, de 26 de abril de 1995, e do art. 17 do Decreto nº 3.725, de 10 de janeiro do 2001. "

Note-se que referido contrato de cessão de aforamento gratuito, celebrado com vistas a proceder à regularização fundiária dos moradores de baixa renda da comunidade "Entra Apulso", ainda não foi implementado pelos Réus União e Município do Recife, conforme ofícios remetidos, em resposta a este Juízo, pela SPU (Ofício SEI 0 11416/2015-MP - id. 4058300.11822061) e pela Secretaria de Habitação do Recife (Ofício. nº 3/2O15 GAB/SEHAB - id. 4058300.11822060).

Registro ainda que Ação Reivindicatória nº 0002984-10.2000.4.05.8300 (1ª Vara Federal/PE), proposta pelos ora Réus Edvaldo e Edvando Moreno Goes contra vários possuidores que construíram seus imóveis no Lote 12, do Loteamento "Sítio do Meio", entre os quais a ora Autora, foi julgada improcedente, cujo v. acórdão transitado em julgado restou assim ementado:

"ADMINISTRATIVO. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. APELAÇÃO. BEM IMÓVEL ADQUIRIDO EM 1980. ÁREA INSERIDA EM ZONA ESPECIAL DE INTERESSE SOCIAL - ZEIS. CONTRATO DE CESSÃO SOB REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO. A UNIÃO FEDERAL (CEDENTE) CEDEU A ÁREA PARA O MUNICÍPIO DO RECIFE (CESSIONÁRIO). IMPLANTAÇÃO DE ÁREA DE URBANIZAÇÃO E REGULARIZAÇAO FUNDIÁRIA DAS FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA QUE OCUPAVAM A REFERIDA ÁREA. DESTINAÇÃO SOCIAL. CONSTATAÇÃO DE QUE OS AUTORES NUNCA DETIVERAM A POSSE DO IMÓVEL OBJETO DOS AUTOS. HIPÓTESE DE ABANDONO DE POSSE. SENTENÇA MANTIDA.

1. A sentença recorrida julgou a ação improcedente, tendo em vista a destinação social dada à área em que está localizado o imóvel objeto dos autos, e, ainda, a constatação do abandono da posse, nos termos da sentença de fls. 366/379.

2. Os autores alegam ter adquirido o imóvel da Sra. Virgínia da Cruz Lapa, em 2.03.19880; que estão pagando regularmente o IPTU e foro incidentes no referido imóvel; que sempre cuidaram do estado de conservação do imóvel; que o imóvel foi invadido; que logo em seguida teriam promovido ação de reintegração de posse; que a matéria pertinente ao pagamento dos impostos e foro não foi apreciada pela sentença, e que, em caso de improcedência a responsabilidade pelos pagamentos dos foros deveria ser transferida para os detentores atuais da posse; que não se revela justo pagarem os impostos devidos e não usufruírem da posse do imóvel descrito na p.

3. A referida área encontra-se localizada nas proximidades do Shopping Center Recife, tendo sido objeto de CONTRATO DE CESSÃO SOB O REGIME DE AFORAMENTO GRATUITO, em que a UNIÃO FEDERAL figura como cedente e a MUNICÍPIO DO RECIFE como cessionário.

4. Os demandantes não chegaram seque a ocupar os referidos imóveis desde a sua aquisição, razão porque não podem ser beneficiados com o ato de cessão em favor do Município do Recife.

5. A sentença recorrida esclareceu, de forma pormenorizada, a desídia dos autores da ação na recuperação da posse do imóvel, constatando, ainda, a hipótese de abandono de posse disciplinada pelos arts. 103, V, e 105, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 9.760/46, com a redação dada pela Lei nº 11.481/2007).

6. No que concerne aos pagamentos de foro que os demandantes alegam estar efetivando, o respectivo ressarcimento apenas poderá ser admitido através do ajuizamento de ação própria, vez que a presente demanda restringe-se apenas à reivindicação de bem imóvel que não mais se encontra na posse dos autores desde o ano de 1987.

7. Apelação improvida.

(PROCESSO: 200083000029841, APELAÇÃO CIVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL MANOEL ERHARDT, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 25/04/2013, PUBLICAÇÃO: 02/05/2013)"    (G.N.)

No caso concreto, portanto, considerando todo o conjunto probatório dos autos, tenho que se encontram visíveis, na posse da Autora, todos os característicos de posse mansa e pacífica, com animus domini, a autorizar o deferimento do domínio útil por usucapião do imóvel descrito nos autos, com uma área total de 56,73 m2 (id. 4058300.11821944), situado na Rua Visconde de Jequitinhonha, n° 55, Boa Viagem, Recife/PE (edificado em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE), na comunidade denominada "Entra Apulso".

Ademais, não há nenhum indício nos autos de que a ora Autora seja proprietária de outro imóvel, havendo sim indícios de que realmente não é proprietária de nenhum outro imóvel, conforme declara nos autos (id. 4058300.11821944).

Desse modo, o imóvel em apreço, como visto, é conceituado como terreno acrescido de marinha, em regime de aforamento, conforme Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito, em que a UNIÃO figura como cedente e o MUNICÍPIO DO RECIFE como cessionário, o que possibilita a aquisição de domínio útil mediante ação de usucapião.

2.4 Da verba sucumbencial

Suportará o pagamento das verbas de sucumbência os Réus Edvaldo Moreno Goes e Edvando Moreno Goes, titulares do domínio útil do lote 12 da quadra K, do Loteamento "Sítio do Meio", que ofertaram resistência à pretensão da Autora, a UNIÃO e o MUNICÍPIO DO RECIFE, que ficarão obrigados a regularizar o aforamento no nome da Autora, conforme veremos na conclusão infra.

Ficam excluídos da obrigação sucumbencial os demais Réus e confinantes, porque não ofertaram resistência ao pleito autoral.

3. Dispositivo

Posto isso:

3.1 - Rejeito as preliminares de nulidade da citação e litigância de má-fé suscitadas pelos Réus Edvaldo Moreno Goes e Edvando Moreno Goes.

3.2 - Restam prejudicadas as preliminares de conexão e inépcia da inicial levantadas pelos referidos Réus Edvaldo Moreno Goes e Edvando Moreno Goes.

3.3 - Julgo procedentes os pedidos desta ação de usucapião e declaro que a ora Autora é a titular do domínio útil do terreno acrescido de marinha onde se encontra edificada sua residência, localizada na Rua Visconde de Jequitinhonha, nº 55, Boa Viagem, Recife/PE (edificada em parte do terreno - Lotes 12 e 13, da Quadra K, do Loteamento Sítio do Meio, Boa Viagem, Recife/PE), e condeno os Réus UNIÃO e MUNICÍPIO DO RECIFE a regularizarem o respectivo aforamento em nome da ora Autora e que o façam no prazo de 60(sessenta) dias, contados do dia seguinte à data do trânsito em julgado, concretizando o registro no Sistema Integrado de Administração Patrimonial - SIAPA - SPU, bem como nos cadastros do Município Cessionário, nos termos do noticiado Contrato de Cessão sob o Regime de Aforamento Gratuito, e no respectivo Cartório de Registro de Imóveis, para todos os fins de direito, sob pena de pagamento de multa mensal, à ora Autora, no valor de R$ 1.500,00 (hum mil e quinhentos reais), pro rata, atualizados a partir do mês seguinte ao da publicação desta sentença, pelos índices de correção monetária do Manual de Cálculos do Conselho da Justiça Federal, sem prejuízo da responsabilização pessoal dos Servidores e ou respectivas Chefias que deram azo ao pagamento dessa multa, no campo administrativo, civil e criminal.

3.4 - Outrossim, condeno os Réus EDVALDO MORENO GOES, EDVANDO MORENO GOES, UNIÃO e MUNICÍPIO DO RECIFE em honorários advocatícios, os quais, considerando que o valor da condenação não se mostra capaz de servir como base de cálculo adequada, fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais), nos termos do parágrafo 8º do art. 85, do CPC, pro rata, com atualização pelos índices do manual de cálculos do Conselho da Justiça Federal. 

3.5 - Finalmente, dou o processo por extinto, com resolução do mérito (art. 487, I, CPC).

3.6 - Sentença sujeita ao reexame necessário (art. 496, I, do CPC).

Custas ex lege.

Registre-se. Intimem-se.

Recife/PE, 05.03.2021.

Francisco Alves dos Santos Júnior

Juiz Federal, 2ª Vara da JFPE

 

 

(mppl)

 

 


[1] https://cp.trf5.jus.br/processo/0002984-10.2000.4.05.8300

[2] "As Zonas Especiais de Interesse Social-ZEIS são áreas de assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente, existentes, consolidados ou propostos pelo Poder Público, onde haja possibilidade de urbanização e regularização fundiária e construção de habitação de interesse social."

Disponível no site da Prefeitura do Município do Recife:

https://licenciamento.recife.pe.gov.br/node/921