sexta-feira, 31 de julho de 2020

SAÚDE PÚBLICA. DANOS MORAIS. TRATAMENTO DESUMANO.

Por Francisco Alves dos Santos Júnior

Na sentença que segue, os  horrores das salas de espera dos Hospitais Públicos, a clamar providências por parte dos Ministérios Públicos Estadual e Federal.
A responsabilidade concorrente e solidária da UNIÃO com as demais Unidades da Federação no campo da saúde pública. 
Boa  leitura. 


PROCESSO Nº: 0812354-47.2018.4.05.8300 - PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL
AUTOR: S M E
ADVOGADO: 
SORAIA DE FÁTIMA VELOSO MARTINS e outro 
RÉU: UNIÃO FEDERAL - UNIÃO. e outro
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
SENTENÇA TIPO C


EMENTA - PROCESSUAL CIVIL. PARCIAL PERDA, SUPERVENIENTE, DO OBJETO.
-A UNIÃO é concorrente e solidariamente responsável pelos  serviços prestados, no campo da saúde pública, pelas demais Unidades da Federação.
-Quanto à cirurgia, já realizada, houve perda superveniente do objeto
-Quanto aos danos morais, cujos fatos que lhe de deram origem, não foram, sequer, diretamente contestados, prospera o pedido.

-Condenação das Pares Rés em verba honorária, pelo princípio da causalidade.


Vistos, etc.

1. Breve Relatório


SEVERINA MARINHO ESPINDOLA, qualificada na Inicial, ajuizou esta AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (CONCRETIZAÇÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL) C/CPEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA PROVISÓRIA em face da  UNIÃO FEDERAL e do ESTADO DE PERNAMBUCO. Requereu, preliminarmente, os benefícios da Justiça Gratuita, bem como  prioridade de tramitação do feito. Aduziu, em síntese, que: a presente ação buscaria que fosse assegurado o atendimento à saúde da paciente SEVERINA MARINHO ESPINDOLA, o qual necessitaria COM URGÊNCIA, de uma cirurgia de CIRURGIA NO FÊMUR ESQUERDO devido a um acidente doméstico; a autora, assistida por sua neta KILZA DANIELE FERREIRA DE SOUZA, estaria no corredor da emergência do HOSPITAL GETÚLIO VARGAS, aguardando transferência para o HOSPITAL SANTA CASA DE MISERICÓRDIA para fazer cirurgia do fêmur esquerdo, conforme fotocópia de protocolo de encaminhamento da UPA de Nova Descoberta; a AUTORA teria dado entrada no hospital GETÚLIO VARGAS em 27 de agosto de 2018, e que desde tal  data até 29 de agosto de 2018(data da propositura desta ação), não teria sido atendida; a Requerente estaria sem tomar banho desde 27 de agosto de 2018, isto é, há 3 (três) dias, estando em estado deplorável pela falta de atendimento do setor responsável do hospital GETÚLIO VARGAS; a Autora seria uma idosa de 81 anos e estaria sofrendo muito com esta situação de abandono; teria sido feita uma denúncia da Ouvidoria do Governo do Estado e na Ouvidoria do próprio hospital GETÚLIO VARGAS. Teceu outros comentários, notadamente acerca do direito à saúde constitucionalmente garantido. Pugnou, ao final, pela concessão da TUTELA DE URGÊNCIA INAUDITA ALTERA PARS, nos termos do art. 300 e seguintes do Novo CPC, pra determinar ao ESTADO DE PERNAMBUCO e à UNIÃO FEDERAL que forneçam IMEDIATAMENTE o transporte e deslocamento do Requerente para uma imediata internação, CIRURGIA indicada e tratamento médico em Hospital de referência cadastrado junto ao SUS, ou, se necessário, em Hospital da rede privada neste caso com todas as despesas custeadas pela Fazenda Pública. Protestou o de estilo. Inicial instruída com procuração e documentos.


A parte autora apresentou emenda à Inicial, na qual pugnou pela condenação das partes Rés em danos morais em valor não inferior a R$30.000,00. (Id. 4058300.610258).

Decisão sob Id. 4058300.6108638 na qual foi indeferido o pleito antecipatório.

A União apresentou Contestação. Levantou, preliminarmente, ilegitimidade passiva ad causam e falta de interesse de agir, uma vez que não teria havido negativa à realização da cirurgia. Sustentou, ainda, que não seria possível mensurar o valor da condenação, razão pela qual deveria se atribuir à causa o valor de R$1.000,00 (mil reais). Teceu outros comentários. Transcreveu precedentes. Pugnou, ao final, pela decretação de improcedência dos pedidos (Id. 4058300.6250097).

O Estado de Pernambuco apresentou Contestação. Inicialmente, impugnou o valor atribuído à causa e falta de interesse de agir, ante a ausência da pretensão resistida. No mérito, defendeu que, no que tange ao procedimento cirúrgico em questão, sustentou que em ambiente hospitalar, haveria prioridades e gravidades de casos a justificar eventual preferência de internamento e realização dos procedimentos cirúrgicos, dentro das disponibilidades e capacidades do poder público. Teceu outros comentários. Pugnou, ao final, pela decretação de improcedência dos pedidos (Id. 4058300.6379171).

A parte autora apresentou Réplica, rebatendo os argumentos da Defesa e reiterando os termos da Inicial (Id. 4058300.8416741).

Determinou-se a intimação da parte autora para que esclarecesse quanto ao seu atual estado de saúde e se a cirurgia fora realizada (Id. 4058300.10560320).

A parte autora noticiou que teria sido realizada a cirurgia (Id. 4058300.10847620) e juntou documentos referentes ao seu estado de saúde (Id. 4058300.13298386 e 4058300.13298388).

As partes não pugnaram pela produção adicional de provas (Id. 4058300.13821640, 4058300.13644057, 4058300.13558724)

2. Fundamentação

2.1. Da Preliminar de Ilegitimidade passiva ad causam suscitada pela União

No que se refere à legitimidade, importante registrar que, o Plenário do STF, em sessão de 22.05.2019, fixou a seguinte tese de repercussão geral ao julgar o RE 855.178 (Tema 793): "Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".
Ademais, não cabe a UNIÃO apena repassar para as demais Unidades da Federação, via SUS, os valores de receitas que arrecada das contribuições da seguridade social, mas também tem a obrigação de fiscalizar e ver se tais verbas estão sendo aplicadas corretamente e se o atendimento à população observa grau mínimo de dignidade humana.  
Daí a sua responsabilidade solidária e concorrente com as demais Unidades da Federação.

Sendo assim, há de ser rejeitada esta preliminar da sua defesa. 

2.2. Da falta de interesse de agir



O interesse do autor deve existir no momento em que a sentença é proferida. Se desapareceu antes, a ação terá que ser rejeitada  (JTJ 163/9, JTA 106/391), de ofício e a qualquer tempo (STJ - 3ª Turma, REsp 23.563-RJ-AgRg, rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 19.08.97, negaram provimento, v.u., DJU 15.09.97, p. 44.372)"



Em face da realização da cirurgia pretendida (vide Ids.4058300.13298386 e e4058300.13298383), vê-se que se faz desnecessária a intervenção do Estado-Juiz na composição de um conflito de interesses que não mais existe, situação essa que exige, quanto a esse pleito,  a extinção do feito, sem julgamento do mérito.
2.3 - Dos Danos Morais
No entanto, resta analisar o pleito, feito via aditamento da petição inicial, acostado sob id 4058300.6102591, a tempo e modo, de indenização por danos morais, no valor de R$ 30.000,00.
As Partes do polo passivo não contestaram, diretamente,  os lamentáveis fatos descritos na petição inicial.
A respeito, a UNIÃO alegou que pelo princípio da isonomia a Autora não poderia exigir tratamento privilegiado, de forma a ser submetida a cirurgia antes dos outros Pacientes.
Na mesma toada defendeu-se o Estado de Pernambuco, verbis:
"É certo que o internamento de qualquer paciente na rede pública, bem como o direito de realização de procedimentos cirúrgicos é questão que se subordina às regras das políticas públicas de saúde definidoras dos protocolos terapêuticos e das diretrizes para o tratamento das doenças, a partir de requisições médicas.
Muitas, vezes, a eleição de procedimentos cirúrgicos e o momento de sua realização depende da escolha entre casos mais ou menos prioritários, a depender da gravidade do estado clínico de pacientes, a ser observada pela equipe médica e direção médica da unidade hospitalar, dentro da restrição existente de recursos humanos e materiais - que não são ilimitados - por óbvio.
O que não se admite é a concessão de privilégios não oferecidos aos pacientes em geral, sob pena de inviabilizar o atendimento médico."
Realmente, não poderia  a Autora exigir "passar na frente" dos demais Pacientes. E nem o Juiz, via liminar, obrigar o Médico Administrador do Hospital a fazer isso.
Mas também não poderia a Autora  receber o tratamento desumano que recebeu, conforme os fatos que narrou e que não foram diretamente contestados. 
O tratamento deve isonômico para os Pacientes do SUS, mas não se pode admitir um "destratamento" isonômico, porque os cidadãos vão aos Hospitais Públicos para receber tratamento e não para ser destradados.
Eis como os lamentáveis fatos estão  relatados na  petição inicial:
"2. Destaque-se que a data que a AUTORA deu entrada no hospital GETÚLIO VARGAS foi à data de 27 de agosto de 2018, e que desde esta data não foi atendida, isto é, está com o seu fêmur esquerdo quebrado, mas ainda assim, não foi atendida até a presente data;
3. A neta da AUTORA vem suportando junto com a Requerente essa falta de atendimento médico do SUS, na sua rede de hospitais públicos;
4. A neta da AUTORA ressalta que a Requerente estar sem tomar banho desde 27de agosto de 2018, isto é, a 3 (três) dias não tomou banho, es ando em estado deplorável pela falta de atendimento do setor responsável do hospital GETÚLIO VARGAS;
5. A neta da AUTORA tentou inúmeras vezes protocolar pedido formal de falta de atendimento, para adquirir uma certidão de que não havia vaga na rede de hospitais do SUS, no entanto, os funcionários do hospital leiam-se, os médicos desse hospital, na quiseram entregar esse documento para a neta da Requerente;
6. A AUTORA é uma idosa de 81 anos que está sofrendo muito com esta situação de abandono em que se encontra, onde mesmo com a sua perna quebrada a 3 (três) dias e com a idade de 81 anos, não é atendida, sofrendo com dores fortes, que os medicamentos paliativos não resolvem;
7. Outro fato que a AUTORA está sofrendo é que pela falta de banho e o grande calor, fez esta desenvolveu feridas em seu corpo que faz o seu sofrimento aumentar;
8. Buscando uma solução para o sofrimento da sua avó (AUTORA) a neta desta fez denúncia da Ouvidoria do Governo do Estado e na Ouvidoria do próprio hospital GETÚLIO VARGAS, por telefone, porém, a resposta que obteve do atendimento destas Ouvidorias foi de que teria que esperar até 15 a 20 dias para ter uma resposta ao seu pedido que almejava que a sua avó (AUTORA) fosse atendida pela rede de hospitais do SUS, conforme fotocópia de nº. 2757549 atendente Juliane e nº. 2758404 Lucenilda Maria da Silva Marques;
9. Deve ser destacado que caso a AUTORA não seja imediatamente atendida, provavelmente, desenvolverá infecção hospitalar, pela exposição, idade e forma que está tratada naquele hospital;".
Uma verdadeira sala de torturas.
Lamentavelmente, isso parece ser tão corriqueiro nas desorganizadas salas de espera dos Hospitais Públicos  que, como já dito,  os Requeridos não se preocuparam, sequer, em contestar, diretamente tais lamentáveis fatos.
A UNIÃO chegou a alegar, na sua contestação, que não teria havido pedido na via administrativa, para gerar a lide, como se a presença da Autora e os clamores da sua Neta, que lhe acompanhava naquele triste momento, naquele local, por si só, já não fosse pedido administrativo,  causador da lide, posto que  não atendido prontamente. 
E, genericamente, os dois Requeridos,  alegaram que a Autora  teria que suportar o "tratamento" isonômico. 
O  Juiz não pode conceder medida liminar em MS, nem tutela provisória de urgência, em ação de procedimento comum, para obrigar a administração do  Hospital a "passar na frente" qualquer Paciente, porque seria  uma interferência indevida na administração ou "desadministração" hospitalar.
Mas isso não significa que o Poder Judiciário não possa condenar os titulares desses Hospitais Públicos pelos atos desumanos aos quais estão submetendo a população que dos seus serviços necessitam.
A Autora  não queria  nenhum privilégio, apenas um tratamento humano mínimo, correspondente à obrigação da Administração do mencionado Hospital em garantir aos  Pacientes tal tratamento mínimo,  digno,  no campo do asseio pessoal, no alívio das dores físicas,  e na área emocional.
Sem dúvida nenhuma, a submissão de qualquer cidadão à situação à qual foi submetida a Autora, caracteriza escancaradamente o dano moral, pois, de forma até covarde, o Estado submete o cidadão mais carente à situação desumana, de dor física e moral.
Já passou da hora de os Ministérios Públicos tomarem providências contra esse descalabro, buscando a punição de quem de direito.
Então, por se tratar de fatos incontroversos, os Requeridos serão condenados,  pro rata, ao pagamento da pleiteada indenização pelos danos  morais sofridos pela Autora, no valor de R$ 30.000,00(trinta mil reais), indicado na  petição inicial, o qual considero razoável e compatível com os referidos danos.
2.2 - As Partes requeridas também, frente ao princípio da causalidade,  serão condenadas,  pro rata, a pagar verba honorária à Ilustre Patrona da Autora, Dra. SORAIA DE FÁTIMA VELOSO MARTINS (OAB/PE 31.007), posto que se tivessem cumprido, minimanente, as regras legais quanto ao tratamento que deve ser dado aos Pacientes que buscam os Hospitais Públicos, a Autora  não teria sido obrigada a propor esta ação.
E será  arbitrada, à luz da regra do § 2º do art. 85 do CPC,  no percentual mínimo legal de 10%(dez por cento),  em face da simplicidade da causa.
3. Dispositivo



POSTO ISSO:
3.1 - rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam suscitada pela União;
3.2 - quanto à cirurgia, que já se realizou, tenho que houve superveniente perda de objeto e o advento de superveniente falta de interesse processual de agir da Parte Autora, pelo que, com relação a tal pleito,   dou este processo por extinto, sem resolução do mérito (art. 485-VI do Código de Processo Civil);
3.3 - com relação ao pedido de indenização por danos morais, julgo procedente tal pedido e condeno os Requeridos,  pro rata, a indenizar a Autora  no valor de R$ 30.000,00(trinta mil reais), com atualização(correção monetária e juros de  mora), desde a data da citação até a data da expedição dos requisitórios, conforme STF, Plenário, RE 579-431/RS e STJ, Corte Especial, QO no REsp nº 1665599RS Questão de Ordem no REsp nº 2017/0086957-6, Tema Repetitivo 291, observados a forma e os índices do manual de cálculos  do Conselho da Justiça Federal, sendo  que essa atualização, quanto à parcela devida  pela UNIÃO,  será feita pelo setor de requisitórios do TRF5R, conforme conforme Resolução nº 2017/00458 do CJF-RES, de 04 de outubro de 2017, e, quanto à parcela devida pelo Estado de Pernambuco, será observada a legislação própria. 


3.4 - à luz do princípio da causalidade, condeno os Requeridos, pro rata, em verba honorária advocatícia, que arbitro em 10% do valor atualizado da condenação(correção monetária e juros de mora), na forma indicada no subitem anterior;
3.5 - abra-se vista deste feito ao MPF e remeta-se cópia  desta sentença para o Ministério Público Estadual, para que visitem-fiscalizem as salas de espera dos Hospitais Públicos do Estado de Pernambuco e, se for o caso, para que tomem as providências administrativas e penais pertinentes.
Registre-se. Intime-se.

Recife, 31.07.2020.

Francisco Alves dos Santos Júnior





Juiz Federal, 2ª Vara/PE

Um comentário:

  1. À União compete assistir aos seus com dignidade. O SUS tem que atender com respeito, afinal lida com seres humanos. Na maioria das vezes pessoas morrem por falta de assistência médica, e dinheiro para a saúde o governo federal tem, basta priorizá-la. PARABÉNS ao dr.Francisco Júnior pela decisão tomada.

    ResponderExcluir