Por Francisco Alves dos Santos Júnior
Discute-se, na sentença infra, o problema do piso nacional de salário e da carga horária dos Dentistas(odontólogos, cirurgiões dentistas), fixado na Lei Federal nº 3.999, de 1961, e as Leis Municipais que não observam essa Lei Federal, mesclando-se com a autonomia político-administrativa dos Municípios, com a regra constitucional que veda a indexação dos vencimentos dos servidores pelo índice do salário mínimo, bem como examinando o último entendimento da Suprema Corte a respeito de problema análogo.
Boa leitura.
PROCESSO Nº: 0825378-11.2019.4.05.8300 - AÇÃO CIVIL PÚBLICA
AUTOR: CONSELHO REGIONAL DE ODONTOLOGIA DE PERNAMBUCO
RÉU: MUNICÍPIO DE PALMERINA/PE
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
Sentença tipo A.
EMENTA:- DIREITO
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCURSO PÚBLICO. ODONTÓLOGO. PISO
SALARIAL. MUNICÍPIO (PREFEITURA MUNICIPAL). LEGISLAÇÃO FEDERAL.
NECESSIDADE DE LEI MUNICIPAL QUE A INCORPORE.
-Os
Municípios só podem contratar Dentistas(odontólogos, cirurgiões
dentistas) quando tiver Lei Municipal própria incorporando no seu
universo administrativo o piso nacional e a carga horária para esse tipo
de profissional.
-Precedente da Suprema Corte.
-Procedência parcial do pedido.
Vistos etc.
1 - Relatório
O
CONSELHO REGIONAL DE ODONTOLOGIA DE PERNAMBUCO, qualificado na Petição
Inicial, ajuizou, em 17/12/2019, esta Ação Civil Pública em face da
PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRINA. Alegou, em síntese, que: é Autarquia
Federal que teria por finalidade zelar pelo perfeito desempenho ético
da odontologia, prestígio e bom conceito da profissão; pretenderia, com
esta ação, coibir lesão ao erário, e defender o direito coletivo de
todos os cirurgiões dentistas eventualmente interessados em participar
da Seleção Pública lançada pelo Município/Requerido; a Prefeitura
Municipal de Palmeirina/PE teria lançado o Edital nº 01/2019, de
21/10/2019, por meio do qual teria sido aberto Concurso Público para a
contratação de 01 (um) Odontólogo; o Edital teria sofrido várias
retificações, sendo a última em 09/12/2019; para a referida função,
teria sido prevista uma carga horária de 40 horas semanais e vencimentos
mensais de R$2.000,00 (dois mil reais), o que estaria em desacordo com o
piso estabelecido na Lei nº 3.999/61; assim, muitos profissionais não
teriam feito a inscrição, diante da condição e formas ofertadas; estaria
previsto para o período de 16 a 18 de dezembro de 2019, a divulgação do
gabarito preliminar das provas objetivas e recebimento de recursos; a
Lei nº 3.999/61 estabeleceria piso salarial para os cirurgiões dentistas
equivalente a três salários mínimos, para uma jornada de 20 horas
semanais, que corresponderia a R$2.994,00; a remuneração ofertada não
teria coerência com a função de Cirurgião-Dentista, que seria de grande
complexidade e essencial para a saúde da população; estariam presentes
os requisitos elencados no art. 300 do CPC, para a concessão da tutela
de urgência. Teceu outros comentários, e requereu: "a) A concessão da
medida liminar, inaudita altera para, determinar a ANULAÇÃO DO CONCURSO
PÚBLICO APENAS para a 01 (uma) VAGA de ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA
RETIFICADO O EDITAL, mediante o cumprimento do piso salarial imposto em
Lei Nº 3999/61, reabrindo o período de inscrições; b) A citação do réu
para, querendo, contestar a presente demanda; c) Ao final, sejam
julgados procedentes os pedidos, confirmando a medida liminar, que
determinou ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO APENAS para a 01 (uma) VAGA de
ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA RETIFICADO O EDITAL, mediante o cumprimento do
piso salarial imposto em Lei Federal Nº 3999/61, reabrindo o período de
inscrições; d) Que acaso não seja este o entendimento de Vossa
Excelência de "anulação do Concurso Público para a vaga de Cirurgião
Dentista, retificação do Edital cumprindo o piso salarial imposto pela
Lei Federal Nº 3.999/61 reabrindo o período de inscrições", que seja
determinado o pagamento do piso salarial estabelecido na Lei Nº 3.999/61
aos Cirurgiões Dentistas convocados, desde o início de suas atividades;
e) A intimação do Ilmo. Representante do Ministério Público para atuar
como fiscal da lei; f) A condenação do réu nas custas, honorários e
demais ônus da sucumbência; g) A produção de prova exclusivamente
documental, tendo em vista se tratar de discussão de direito comprovada
por provas pré-constituídas e que deverão ser juntadas pelos réus,
conforme requerido no pedido "b";" Atribuiu valor a causa e juntou instrumento de procuração e documentos.
Decisão
na qual foi reconhecida a legitimação ativa do Conselho Regional de
Odontologia de Pernambuco para ajuizar esta Ação Civil Pública e
indeferiu a medida liminar pleiteada.
O
E. TRF-5ª Região comunicou a r. Decisão que deferiu, parcialmente, a
medida liminar, proferida nos autos do Agravo de Instrumento interposto
pelo Impetrante em face da decisão deste Juízo que indeferiu a medida
liminar pleiteada na Inicial. O E. TRF-5ª Região determinou a suspensão
do concurso público referente ao Edital nº 001/2019, apenas em relação
ao cargo de odontólogo.
Despacho sob id. 4058300.13942555 no qual foi determinada a intimação das Partes para cumprir a r. Decisão acima aludida.
O Ministério Público Federal ofertou r. Parecer no qual opinou pela improcedência dos pedidos formulados na Inicial.
Certificado o decurso do prazo sem que o Réu/Município de Palmerina/PE tenha apresentado sua Contestação, apesar de citado.
É o relatório, no essencial.
Fundamento e decido.
2- Fundamentação
2.1 - Da revelia do Réu e do julgamento antecipado da lide
Ante
a certidão da Secretaria de id. nº 4058300.15876695, na qual é atestado
o decurso do prazo sem que o Município, ora Réu, tivesse apresentado
Contestação, é de ser decreta a sua revelia sem os respectivos efeitos
do art. 344 do CPC/2015, por versar o presente litígio sobre direitos
indisponíveis (inciso II do art. 345 do CPC).
Julgo este feito antecipadamente, por não ser necessária qualquer dilação probatória(art. 355, I, CPC).
2.2 - Mérito
2.2.1
- O Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco busca, em sede de
medida liminar, a anulação do concurso público regido pelo Edital de Seleção Pública Simplificada n° 001/2019, de 21 de outubro de 2019, promovido pelo Município-Réu, e a retificação do referido Edital mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei 3999/61, com a reabertura das inscrições.
E, no mérito: "(...) sejam julgados procedentes os pedidos, confirmando
a medida liminar que determinou ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO APENAS
para a 01 (uma) VAGA de ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA RETIFICADO O EDITAL,
mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei Federal Nº
3999/61, reabrindo o período de inscrições;"
Formulou o seguinte pedido subsidiário: "(...) que
seja determinado o pagamento do piso salarial estabelecido na Lei Nº
3.999/61 aos Cirurgiões Dentistas convocados, desde o início de suas
atividades;"
2.2.2
- Sobre a situação versada nos autos - inobservância por Município
(Prefeitura Municipal), na contratação de servidores por concurso
público, do piso salarial da categoria profissional dos Odontólogos,
estabelecido por lei ordinária federal, o Supremo Tribunal Federal, em
feito análogo, deu provimento ao Recurso Extraordinário interposto pelo
Conselho de Radiologia da 2ª Região, e restabeleceu, naquele caso
concreto, a sentença proferida pelo magistrado de primeira instância,
que julgara procedente o pleito autoral.
A decisão do C. STF, abaixo transcrita, mutatis mutandis, aplica-se ao caso dos autos, in verbis:
"RE 1127495 / CE - CEARÁ
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 27/11/2019
Publicação
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-262 DIVULG 29/11/2019 PUBLIC 02/12/2019
Partes
RECTE.(S):
CONSELHO REGIONAL DE TECNICOS EM RADIOLOGIA 2 REGIAO ADV.(A/S) : CARLOS
ALBERTO DE PAIVA VIANA RECDO.(A/S) : MUNICÍPIO DE MOMBAÇA ADV.(A/S) :
NARCISO LOPES DA COSTA FILHO ADV.(A/S) : PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO
DE MOMBAÇA
DECISÃO:
O presente recurso extraordinário resulta da conversão, pelo E.
Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial que foi interposto
pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 2ª Região contra
acórdão que, proferido pelo E. Tribunal Regional Federal da 5ª Região,
está assim ementado:
"CONSTITUCIONAL
E ADMINISTRATIVO. REMESSA OFICIAL NÃO CONHECIDA (ART. 475, § 2º, DO
CPC/73). APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO CONSELHO
PROFISSIONAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONCURSO MUNICIPAL PARA
TÉCNICO EM RADIOLOGIA. CARGA HORÁRIA E PISO SALARIAL. LEI FEDERAL
7.394/85. NÃO APLICAÇÃO FRENTE À AUTONOMIA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DO
MUNICÍPIO. PROVIMENTO.
1.
Apelação interposta pelo município réu contra sentença que determinou a
observância dos parâmetros estabelecidos na Lei Federal 7.394/85, em
concurso municipal destinado ao provimento de cargos de Técnicos em
Radiologia, no que se refere à carga horária semanal e ao piso salarial
desses profissionais.
2.
Considerando-se que o valor atribuído à causa é de R$ 1.000,00 (mil
reais) e que inexiste condenação de natureza pecuniária, visto que o
Juízo singular, na sentença, impôs apenas obrigação de não fazer,
incide, aqui, a regra prevista no art. 475, § 2º, do CPC/73, a afastar,
portanto, a necessidade do duplo grau de jurisdição obrigatório.
3.
Da leitura do art. 12 da Lei 7.394/85 e do art. 23, VIII do Decreto
92.790/86, conclui-se que cabe ao Conselho Regional de Técnicos em
Radiologia não só fiscalizar o exercício profissional, como também
defender os direitos da respectiva categoria, sendo, portanto, parte
legítima para ajuizar a presente ação.
4.
Reconhecida, no caso em apreço, a legitimidade ativa do Conselho
Regional de Técnicos em Radiologia, autarquia federal (art. 12 do
Decreto 92.790/86), a competência da Justiça Federal para processar e
julgar a presente lide decorre da expressa dicção do art. 109, I, da
Constituição.
5.
Os municípios são entidades federadas autônomas (art. 18, CF), de forma
que possuem a prerrogativa de dispor sobre a remuneração e o regime de
trabalho de seus servidores ocupantes de cargos públicos, não estando
vinculados à Lei Federal 7.394/85 no que diz respeito à carga horária e
ao piso salarial dos Técnicos em Radiologia.
6.
Não há que se falar em invasão da competência legislativa da União para
estabelecer 'condições ao exercício das profissões', pois, no caso
concreto, em se tratando de cargo público municipal, não se tem uma
relação de emprego contratual regida pelo sistema celetista, mas uma
relação regulamentada por um estatuto próprio. Precedentes:
08000139120154058106, APELREEX/CE, Rel. Des. Federal RUBENS DE MENDONÇA
CANUTO, Quarta Turma, JULGAMENTO: 01/06/2016; 00041381420124050000, AG
124241/PE, Rel. Des. Federal FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma,
JULGAMENTO: 30/08/2012, DJE 06/09/2012, p. 385.
7.
Remessa oficial não conhecida. Apelação provida, julgando-se
improcedente o pedido deduzido pelo autor. Sem condenação em honorários
(arts. 5º, LXXIII, da CF e 18 da Lei 7.347/85)." (grifei)
A
parte ora recorrente, em cumprimento à diligência prevista no art.
1.032, do "caput", do CPC, sustentou que o Tribunal "a quo" teria
transgredido o preceito inscrito no art. 22, XVI, da Constituição da
República.
O
Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra do ilustre
Subprocurador-Geral da República Dr. CARLOS ALBERTO VILHENA, opinou pelo
provimento do apelo extremo em parecer no qual assentou a seguinte
conclusão:
"RECURSO
EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. PRETENSÃO DE SUJEIÇÃO À
JORNADA MÁXIMA DE TRABALHO PREVISTA NA LEI FEDERAL QUE ESTABELECE AS
CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. NÃO ACOLHIMENTO.
ACÓRDÃO
RECORRIDO QUE SE CONTRAPÕE À PACÍFICA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, FIRMADA NO SENTIDO DE COMPETIR À UNIÃO O
ESTABELECIMENTO DE CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DE PROFISSÕES, MESMO
QUANDO SE TRATA DE SERVIDOR PÚBLICO SUJEITO A REGIME ESTATUTÁRIO PRÓPRIO
DO ENTE FEDERATIVO.
AO
APRECIAR IDÊNTICA CONTROVÉRSIA, RELATIVA A SERVIDORES MUNICIPAIS QUE
EXERCIAM AS PROFISSÕES DE FISIOTERAPEUTA E TERAPEUTA OCUPACIONAL EM
DESCONFORMIDADE COM A JORNADA DE TRABALHO MÁXIMA ESTABELECIDA EM LEI
FEDERAL, A SUPREMA CORTE DELIBEROU QUE 'A LEI [FEDERAL] N. 8.856/1994,
QUE FIXA A JORNADA DE TRABALHO DOS PROFISSIONAIS FISIOTERAPEUTA E
TERAPEUTA OCUPACIONAL, É NORMA GERAL E DEVE SER APLICADA A TODOS OS
PROFISSIONAIS DA ÁREA TANTO DO SETOR PÚBLICO QUANTO DO PRIVADO' (ARE
758227 AGR). CONCLUSÃO QUE INDEPENDE DA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO
INFRACONSTITUCIONAL - FEDERAL E LOCAL - RELATIVA AOS MENCIONADOS AGENTES
PÚBLICOS. MANIFESTAÇÃO PELO PROVIMENTO DO RECURSO." (grifei)
Sendo
esse o contexto, passo a examinar a postulação recursal em causa. E, ao
fazê-lo, observo que o pleito ora em exame discute um dos postulados
estruturantes da organização institucional do Estado brasileiro, qual
seja, o princípio da Federação.
Com
efeito, a resolução da presente controvérsia constitucional, por isso
mesmo, supõe a definição e a identificação da pessoa estatal investida
de competência para legislar sobre condições para o exercício de
profissões.
Cabe
ter presente, no ponto, que a Constituição da República proclama, na
complexa estrutura política que dá configuração ao modelo federal de
Estado, a coexistência de comunidades jurídicas responsáveis pela
pluralização de ordens normativas próprias, que se distribuem segundo
critérios de discriminação material de competências fixadas pelo texto
constitucional.
O
relacionamento normativo entre essas instâncias de poder - União,
Estados-membros, Distrito Federal e Municípios - encontra fundamento na
Constituição da República, que representa, no contexto político-
-institucional do Estado brasileiro, a expressão formal do pacto
federal, consoante ressaltam, em autorizado magistério, eminentes
doutrinadores (PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira",
vol. 1/374, 1989, Saraiva; MICHEL TEMER, "Elementos de Direito
Constitucional", p. 55/59, 5ª ed., 1989, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES
GANDRA MARTINS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 1/216-221,
1988, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição
Brasileira de 1988", vol. I/131, item n. 38, 1989, Forense
Universitária; RAUL MACHADO HORTA, "Direito Constitucional", p. 309/328,
5ª ed., atualizada por Juliana Campos Horta, 2010, Del Rey, v.g.).
O
estatuto constitucional da República, no qual reside a matriz do pacto
federal, estabelece entre a União e as pessoas políticas locais uma
delicada relação de equilíbrio, consolidada num sistema de discriminação
de competências estatais, de que resultam - considerada a complexidade
estrutural do modelo federativo - ordens jurídicas parciais e
coordenadas entre si, subordinadas à comunidade total, que se identifica
com o próprio Estado Federal (cf. HANS KELSEN, comentado por O. A.
BANDEIRA DE MELLO, "Natureza Jurídica do Estado Federal", "apud" GERALDO
ATALIBA, "Estudos e Pareceres de Direito Tributário", vol. 3/24-25,
1980, RT).
Na
realidade, há uma relação de coalescência, na Federação, entre uma
ordem jurídica total (que emana do próprio Estado Federal, enquanto
comunidade jurídica total, que se expressa, formalmente, nas leis
nacionais) e uma pluralidade de ordens jurídicas parciais, que resultam
da União Federal (leis federais), dos Estados-membros (leis estaduais),
do Distrito Federal (leis distritais) e dos Municípios (leis
municipais).
Nesse
contexto, as comunidades jurídicas parciais são responsáveis pela
instauração de ordens normativas igualmente parciais, sendo algumas de
natureza central, imputáveis, nessa hipótese, à União (enquanto pessoa
política de caráter central), e outras de natureza regional (Estados-
-membros/DF) ou de caráter local (Municípios), enquanto comunidades
periféricas revestidas de autonomia institucional.
Essa
partilha de competências reflete uma das mais expressivas
características do Estado Federal, cujo ordenamento constitucional
disciplina, harmoniosamente, competências privativas e competências
concorrentes, preservando, assim, a autonomia das unidades que lhe
compõem a estrutura jurídico-institucional, investidas, para efeito do
concreto exercício das atribuições normativas, de poderes enumerados -
que resultam, explícita ou implicitamente, da própria Lei Fundamental -
ou, então, de poderes residuais ou remanescentes.
O
exame do Estado Federal brasileiro permite que nele se reconheça a
possibilidade de a União Federal, no sistema de repartição
constitucional de competências estatais, exercer, legitimamente, as
atribuições enumeradas que lhe foram conferidas, em caráter privativo,
pela Carta Política, sem que a prática dessa competência institucional
implique transgressão à prerrogativa básica da autonomia
político-jurídica constitucionalmente reconhecida aos Estados-membros,
ao Distrito Federal e aos Municípios.
É
por isso que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em recentíssimo
julgamento a propósito de controvérsia assemelhada à ora versada nestes
autos, reconheceu pertencer à União Federal - e a esta, apenas - a
competência para legislar sobre condições para o exercício de
profissões:
"DIREITO
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LEI DISTRITAL DE QUE CRIA 'SERVIÇO
COMUNITÁRIO DE QUADRA'. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE.
1.
A Lei nº 2.763/2001, do Distrito Federal, estabelece condições para o
exercício de atividades típicas de policiamento ou segurança ostensivos,
tais como o acompanhamento da chegada e a saída de moradores de suas
moradias, bem como a vigilância de seus automóveis e residências.
2.
O policialmente ostensivo é tarefa de atribuição exclusiva das polícias
militares, nos termos do art. 144, § 5º, da Constituição, sendo
inviável a sua atribuição a particulares. Já em relação ao exercício de
atividades de vigilância e segurança de pessoas e patrimônio, não cabe
ao Distrito Federal estabelecer qualquer tipo de regulamentação, pois é
de competência privativa da União legislar sobre as condições para o
exercício de profissões (Constituição, art. 22, XVI).
3. Procedência do pedido." (ADI 2.752/DF, Rel. Min. Rel. Min. ROBERTO BARROSO - grifei)
Vê-se,
daí, que, tratando-se de matéria subsumível à noção de condições para o
exercício de profissões, há, em face da privatividade da competência
normativa outorgada à União Federal, clara interdição constitucional ao
poder do Município legislar sobre esse tema, como tem reiteradamente
advertido a jurisprudência desta Corte Suprema (ADI 3.587/DF, Rel. Min.
GILMAR MENDES - ADI 4.387/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI - ARE 801.013/RS,
Rel. Min. TEORI ZAVASCKI - ARE 869.896-AgR/MS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO
- ARE 1.077.343/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - ARE 1.229.735/RS, Rel.
Min. CELSO DE MELLO - RE 1.211.339/RN, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES -
RE 1.221.602/RS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, v.g.):
"AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONSTITUCIONAL.
PROFISSIONAIS FISIOTERAPEUTAS E TERAPEUTAS OCUPACIONAIS. CARGA HORÁRIA.
LEI N. 8.856/1994. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE
CONDIÇÕES DE TRABALHO. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA
PROVIMENTO." (ARE 758.227-AgR/PR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA - grifei)
"AGRAVO
REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONDIÇÕES PARA O
EXERCÍCIO DE PROFISSÕES. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. AGRAVO A QUE
SE NEGA PROVIMENTO.
I - Compete à União, privativamente, legislar sobre as condições para o exercício de profissões. Precedentes.
II - Agravo regimental a que se nega provimento."
(ARE 970.577-AgR/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - grifei)
O
exame da presente causa evidencia que o acórdão ora impugnado diverge
da diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em
referência.
Sendo
assim, tendo em consideração as razões expostas, e acolhendo, ainda, os
fundamentos do parecer da douta Procuradoria-Geral da República, dou
provimento ao recurso extraordinário, por estar o acórdão recorrido em
confronto com entendimento emanado desta Suprema Corte (CPC, art. 932,
V, "b"), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo ilustre
magistrado de primeira instância. Publique-se.
Brasília, 27 de novembro de 2019.
Ministro CELSO DE MELLO Relator[1]"
No
caso em apreço, o E. TRF-5ª Região, ao julgar o mérito do Agravo de
Instrumento interposto pelo Autor, determinou a suspensão do concurso em
relação ao cargo de odontólogo e confirmou a liminar recursal
parcialmente deferida, in verbis:
"EMENTA:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TUTELA DE
URGÊNCIA PISO SALARIAL PARA ONDONTÓLOGO. PREVALÊNCIA DA LEGISLAÇÃO
FEDERAL. DESNECESSIDADE DE CANCELAMENTO DO CONCURSO COMO MEDIDA DE
URGÊNCIA. AGRAVO PROVIDO PARA DEFERIR SUSPENSÃO DO CERTAME.
1.
Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo Conselho Regional de
Odontologia de Pernambuco contra decisão, em sede de ação civil pública,
que indeferiu a concessão de tutela de urgência na qual se requeria a
anulação do concurso público para apenas uma vaga de odontólogo, com a
retificação do edital para cumprir o piso salarial imposto pela Lei nº
3.999/61, com a reabertura das inscrições.
2.
O cerne da presente controvérsia consiste em perquirir o cabimento da
aplicação da Lei nº 3.999/61 para cirurgião dentista enquanto servidor
estatutário municipal.
3.
No que tange à vinculação ao salário mínimo operada pela Lei nº
3.999/61, a Constituição da República de 1988 proíbe tão somente que o
salário mínimo sirva para corrigir automaticamente outras verbas
salariais, como indexador, uma vez que tal vinculação poderia servir de
obstáculo à majoração do salário mínimo, tendo em vista que geraria
outros aumentos, ocasionando inflação. A Lei 3.999/61, portanto, é
constitucional na medida em que determina apenas que a admissão dos
cirurgiões dentistas deve ser feita com o respeito ao piso de 3 salários
mínimos. Assim, não indica o diploma legal que deva haver reajuste
automático do salário quando há aumento do salário mínimo. É dizer: os
empregados da categoria devem ser contratados com o salário inicial
equivalente a 2 salários mínimos, sendo reajustado, nos anos posteriores
após a contratação, com o adicional previsto nas Convenções Coletivas
de Trabalho. No mesmo sentido: Rcl nº 9.674/SP-AgR, Segunda Turma,
Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 19/10/15; ARE nº
914.780/DF-AgR, Segunda Turma, de minha relatoria, DJe de 7/3/16).
4.
A Constituição Federal estabelece que é competência privativa da União
legislar sobre as condições para o exercício de profissões (art. 22,
XVI). Por outro lado, o preenchimento dos cargos, empregos e funções
públicas se dará na forma da lei, segundo o art. 37, I da Carta Magna.
5.
Assim, existente legislação federal sobre o assunto, prevalece, em
virtude de competência, a norma federal em detrimento da norma
municipal, o que limita a autonomia do município, tornando obrigatório o
cumprimento das disposições da Lei nº 3.999/61, que regula o exercício
da profissão de cirurgião dentista, no que tange ao preenchimento de
cargo de profissional desta área. Precedentes: PROCESSO Nº
0808523-25.2019.4.05.0000, Desembargador Federal Fernando Braga
Damasceno, Terceira Turma, julgado em 22/10/2019; PROCESSO Nº
0804963-17.2015.4.05.0000, Desembargador Federal Cid Marconi Gurgel de
Souza, Terceira Turma, julgado em 13/11/2015; PROCESSO Nº
0800015-18.2016.4.05.8303, Desembargador Federal Paulo Roberto de
Oliveira Lima, Segunda Turma, julgado em 14/11/2018; PROCESSO Nº
0805265-59.2016.4.05.8100, Desembargador Federal Francisco Roberto
Machado, Primeira Turma, julgado em 30/08/2018.
6.
Apesar de plausível o direito alegado e de se verificar o risco na
demora a justificar a concessão de tutela de urgência no caso concreto,
não se faz necessário, para mitigar os efeitos da demora, que seja
anulado o certame, sendo a suspensão do concurso medida suficiente para
evitar o prejuízo alegado.
7.
Agravo parcialmente provido para determinar a suspensão do concurso em
relação ao cargo de odontólogo, confirmando a liminar recursal
parcialmente deferida. (PROCESSO: 08010314520204050000, AGRAVO DE
INSTRUMENTO, DESEMBARGADORA FEDERAL ISABELLE MARNE CAVALCANTI DE
OLIVEIRA LIMA (CONVOCADA), 3ª TURMA, JULGAMENTO: 22/10/2020[2])
Tanto
a Lei que fixa piso salarial de três salários mínimos para os
odontólogos(Lei 3.999, de 1961), como a Lei que fixa piso salarial de
dois salários mínimos para Técnico em Radiologia(Lei 7.384, de 1985)
são anteriores à vigente Constituição da República que veda,
expressamente, a utilização do salário mínimo para tal finalidade(art.
7º: "IV
- salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de
atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com
moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene,
transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe
preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer
fim";).
Estranho,
pois, que o Supremo Tribunal Federal, em 2019, no julgamento do Recurso
Extraordinário acima indicado, tenha considerado constitucional a Lei
nº 7.384, de 1985, quando fixa o acima referido piso salarial para
Técnico em Radiologia, em dois salários mínimos, ferindo, assim, a acima
transcrita regra constitucional.
Mas,
essa Corte Maior corrigiu-se, relativamente a essa mesma Lei, no
julgamento da ADPV 151/DF, que ficou com a seguinte ementa:
"ADPF 151
Ementa
Ementa:
Direito do Trabalho. Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental. Piso salarial dos técnicos em radiologia. Adicional de
insalubridade. Indexação ao salário mínimo. Medida cautelar confirmada.
1. inconstitucionalidade da indexação de piso salarial ao valor do
salário mínimo. 2. Congelamento da base de cálculo, a fim de que seja
calculada de acordo com o valor de dois salários mínimos vigentes na
data de estabilização da decisão que deferiu a medida cautelar.
Não-recepção do art. 16 da Lei nº 7.394/1985. 3. Arguição de
descumprimento de preceito fundamental julgada procedente.".[3]
No julgado por último referido, a Suprema Corte, enfim, mandou cumprir a acima transcrita regra constitucional.
Extrai-se
dos mencionados julgados da nossa Corte Maior que, aqui, cabe-me apenas
vedar o Município ora Réu a dar continuidade ao mencionado concurso,
com relação aos Odontólogos, qual seja, anular o respectivo item do
edital, porque inobserva o piso salarial e a carga honorária para esses
profissionais, fixados na acima referida Lei Federal nº 3.999, de 1961.
Realmente,
o Judiciário não pode obrigar referido Município a contratar odontólogo
com o noticiado piso nacional de salário e a referida carga honorária,
pois tal Município só poderá assim proceder, por conta da sua
autonomia político-administrativa, depois que a sua Câmara Municipal
baixar Lei nesse sentido e, nas respectivas Leis Orçamentárias, criar a
respectiva dotação orçamentária, pois nenhum Chefe de Poder Executivo
Municipal pode efetuar gastos que não estejam autorizados por Lei
própria.
E,
à luz do último julgado da Suprema Corte, na ADPF 151/DF, deverá
estabelecer na Lei Municípal o estabelecido na Lei Federal nº 3.999, de
1961, para odontólogos, relativamente à respectiva carga horária e,
quanto aos vencimentos, apenas fixar o valor correspondente a três
salários mínimos, hoje R$ 3.135,00(três mil, cento e trinta e cinco
reais), já que um salário mínimo monta em R$ 1.045,00, e, doravante,
estabelecer o reajuste pelo índice de atualização próprio para
reajustes de vencimentos dos seus Servidores, uma vez que há regra na
Constituição, como vimos acima, vedando que se tome o índice de reajuste
do salário mínimo para indexação de qualquer valor, mormente de
vencimentos de servidores públicos, porque geraria inflação, uma vez que
o salário mínimo goza, regra geral, de atualização por índice superior
aos demais índices.
Como
se sabe, nesse sentido há antigos julgados do Supremo Tribunal Federal
estabelecendo que os Municípios não podem aplicar diretamente, na sua
órbita administrativa, em face da sua autonomia político-administrativa,
Leis Federais, sejam ordinárias, sejam complementares, pois os seus
Vereadores, que representam os interesses da sua população, têm, antes,
que incorporar a regra federal na órbita municipal, por Lei própria.
3- Dispositivo
Posto ISSO,
3.1- Decreto a revelia do Município-Réu, sem os respectivos efeitos (CPC, art. 345, II);
3.2
- julgo parcialmente procedentes os pedidos desta ação e decreto a
nulidade do item do edital em debate, relativo ao concurso para
odontólogo com vencimento e carga horária diversos dos fixados na Lei
Federal nº 3.999/61, facultando-lhe, observado o consignado na
fundamentação supra, após o advento de Leis Municipais próprias, a
realização de outra concurso para tal fim. e extingo o processo com
resolução do mérito (CPC, art. 487, I).
Custas na forma da lei.
Sem honorários (Lei nº 7.347/85, art. 18).
De ofício, submeto esta sentença ao duplo grau de jurisdição.
R.I.
Recife, 19.12.2020.
Francisco Alves dos Santos Júnior
Juiz Federal da 2ª Vara Federal da JFPE