terça-feira, 23 de agosto de 2022

SUS. REMÉDIO DE ALTA COMPLEXIDADE. STJ E STF. UM CASO DE CONCESSÃO DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA.

 Por Francisco Alves dos Santos Júnior

Segue uma decisão com atualização da matéria relativa a remédio de alta complexidade a ser forneceido pelo SUS. 

Boa leitura. 

PROCESSO Nº: 0812107-27.2022.4.05.8300 - PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL
AUTOR: E G DA S
REPRESENTANTE: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
RÉU: ESTADO DE PERNAMBUCO. e outro
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO)



D E C I S Ã O 

1. Breve Relatório

Busca a parte autora provimento jurisdicional que lhe assegure a  antecipação dos efeitos da tutela, inaudita altera parte, de forma que se determine que à União e ao Estado de Pernambuco disponibilizem ao Autor o medicamento ABIRATERONA (ZYTIGA®) 250 MG, na dose de 04 (quatro) comprimidos por dia, 120 comprimidos ao mês, de forma contínua, até a progressão da doença ou toxidade limitante, pelo tempo que se fizer necessário, ou, alternativamente, disponibilizem em Juízo numerário suficiente para a aquisição direta da medicação pela parte junto aos fornecedores pelo tempo necessário aos trâmites burocráticos de sua aquisição e disponibilização pelos demandados;

Inicial instruída com procuração e documentos.

Decisão sob Id. 4058300.23549367 na qual foi concedido o benefício da Justiça Gratuita e determinada a remessa dos autos ao NATS/PE.

O NATS ofertou parecer sob Id. 4058300.23828663.

É o relatório, no essencial.

Passo a decidir.

2. Fundamentação

2.1.  Da responsabilidade solidária dos entes federativos 

O funcionamento adequado do SUS é de responsabilidade solidária da União, dos Estados-Membros e dos Municípios, consoante assentado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

"PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DA UNIÃO. REPERCUSSÃO GERAL DECLARADA PELO STF. SOBRESTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. 1. O funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. Precedentes do STJ. 2. O reconhecimento, pelo STF, da repercussão geral não constitui hipótese de sobrestamento de recurso que tramita no STJ, mas de eventual Recurso Extraordinário a ser interposto. 3. A superveniência de sentença homologatória de acordo implica a perda do objeto do Agravo de Instrumento que busca discutir a legitimidade da União para fornecimento de medicamentos. 4. Agravo Regimental não provido. (STJ, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n.º 1107605, Segunda Turma, Relator(a) HERMAN BENJAMIN, DJE Data: 14/9/2010). 

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A Corte Especial firmou a orientação no sentido de que não é necessário o sobrestamento do recurso especial em razão da existência de repercussão geral sobre o tema perante o Supremo Tribunal Federal (REsp 1.143.677/RS, Min. Luiz Fux, DJe de 4.2.2010). 2. O entendimento majoritário desta Corte Superior é no sentido de que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios são solidariamente responsáveis pelo fornecimento de medicamentos às pessoas carentes que necessitam de tratamento médico, o que autoriza o reconhecimento da legitimidade passiva ad causam dos referidos entes para figurar nas demandas sobre o tema. 3. Agravo regimental não provido. (STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial n.º 1159382, Segunda Turma, Relator(a) MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE Data: 1/9/2010)."

Nada obstante, referida solidariedade não obsta que o magistrado, diante de uma situação concreta, direcione o cumprimento da ordem de fornecimento de medicamentos a determinado ente, de forma a melhor operacionalizar o atendimento célere do comando judicial, tal como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 855178, sem prejuízo das compensações financeiras que se façam necessárias entre os entes. 

2.2. Das premissas a serem observadas sobre o tema

Programaticamente, o direito à saúde integra o sistema de proteção da Seguridade Social e configura direito social prestacional, expressamente consagrado nos art. 6º e 196 da vigente Constituição da República.

O seu objeto programático (constituído por prestações materiais na esfera da assistência médica e hospitalar) está vinculado, de forma contundente, ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana, devendo ser analisado nesta perspectiva e à luz do direito positivo concretizador dessa programação constitucional, sem desprezar a dogmática jurídico-constitucional que estrutura o sistema como um todo, especialmente os princípios da universalidade da saúde pública, com as limitações  do princípio da legalidade e da igualdade de tratamento.

E no centro disso tudo exsurge a tenebrosa escassez de recursos, cuja alocação exige escolhas trágicas pela impossibilidade de atendimento integral a todos.

O Supremo Tribunal Federal traçou diretrizes que devem ser ponderadas na solução de conflitos, que podem ser assim resumidas:

"I. É de natureza solidária a responsabilidade dos entes da Federação no serviço público de saúde;

II. Em princípio, o conteúdo do serviço público de saúde restringe-se às políticas adotadas pelo SUS. Por isso, "deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sem que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente".

III. Sujeitam-se ao controle judicial as políticas públicas eleitas pelo SUS pela não inclusão de fármacos e procedimentos. Não basta afirmar o direito à saúde para obrigar o SUS a fornecer fármaco ou a realizar procedimento não incluído no sistema. É indispensável a realização de ampla prova para demonstrar a existência da situação singular ("razões específicas do seu organismo") da ineficácia ou impropriedade do tratamento previsto no SUS.

IV. A Administração Pública não é obrigada a fornecer fármaco sem registro na ANVISA, já que sua inclusão no Sistema Único de Saúde depende prévio registro.".

De outro prisma, decidiu o Superior Tribunal de Justiça - STJ, no Recurso Especial nº 1.657.156/RJ,  representativo da controvérsia, com publicação em 12/09/2018, sobre a concessão de medicamento não constante nos Protocolos Clínicos do SUS e estabeleceu a exigência de três requisitos cumulativos para autorizar sua concessão na via judicial, verbis:

"i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito;
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência."

Modula-se os efeitos do presente repetitivo de forma que os requisitos acima elencados sejam exigidos de forma cumulativa somente quanto aos processos distribuídos a partir da data da publicação do acórdão embargado, ou seja, 4/5/2018

Em sede de embargos de declaração, opostos pelo Estado do Rio de Janeiro, o Superior Tribunal de Justiça -STJ esclareceu que, no caso do fornecimento de medicamentos fora da lista do SUS, conforme precedente estabelecido no citado repetitivo, o requisito do registro na ANVISA afasta a obrigatoriedade de que o poder público forneça remédios para uso off label - aquele prescrito para um uso diferente do que o indicado na bula, fora do rótulo -, salvo nas situações excepcionais autorizadas pela Agência, modificando um trecho do acórdão a fim de substituir a expressão existência de registro na Anvisa para existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência.

O Relator do recurso, ministro Benedito Gonçalves, ressaltou que o esclarecimento em embargos de declaração é necessário para evitar que o sistema público seja obrigado a fornecer medicamentos que, devidamente registrados, tenham sido indicados para utilizações off label que não sejam reconhecidas pela ANVISA nem mesmo em caráter excepcional.

Segundo o Relator, ainda que determinado uso não conste do registro na ANVISA, na hipótese de haver autorização, mesmo precária, para essa utilização, deve ser resguardado ao usuário do SUS o direito de também ter acesso ao medicamento.

Todavia, mais  recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF),  decidiu, em 22/05/2019, que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamento experimental ou sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), salvo em casos excepcionais. A decisão foi tomada, por maioria de votos, no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 657718, com repercussão geral reconhecida, de relatoria do ministro Marco Aurélio.

Com efeito, o Plenário, por maioria de votos, fixou a seguinte tese para efeito de aplicação da repercussão geral:

"1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial.
3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:
I - a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras;
II - a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior;  

III - a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.".

Mencionada Suprema Corte ainda vai decidir quanto aos medicamentos, já aprovados pela ANVISA, mas que, devido ao alto custo e à ausência de forças orçamentárias para custeá-los, ou ainda pelo fato de que possam ser substituídos por outros  fármacos que se encontram nas listas de procedimentos do  SUS, não foram incluídos rol dos medicamentos que podem ser fornecidos pelo SUS.

Essa matéria já se encontra sub judice, no Recurso Extraordinário n.º 566.471-RN. Com efeito, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 11.03.2020, que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não estiverem previstos na relação do Programa de Dispensação de Medicamentos em Caráter Excepcional, do Sistema Único de Saúde (SUS) e  as situações excepcionais ainda serão definidas na formulação da tese de repercussão geral (Tema 6) [1].

Conforme consta no site do STF(2), o julgamento desse RE foi pautado para 10.11.2021, e posteriormente, pautado para outra data, que consta do Dje 217, de 2021, divulgado em 04.11.2021.

Fixadas tais premissas, passo a analisar o caso concreto.

2.3. Das especificidades dos tratamentos em questão

O Sistema Único de Saúde já prevê um programa específico para o tratamento do câncer, concretizado através dos Centros de Alta Complexidade em Oncologia (CACONs) e das Unidades de Assistência de Alta Complexidade (UNACONs), que se realiza por meio de cadastramento prévio e, portanto, verificação do caso clínico, encaminhamento e acompanhamento conforme evolução da doença.

Deste modo, para a obtenção de tratamento específico, indispensável a sua sujeição à política pública existente para o tratamento de câncer, estabelecida pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) e executada por intermédio dos CACONs, não sendo possível o fornecimento direto de medicamento para tratamento privado.

Somente com a prescrição do tratamento junto aos centros de alta complexidade vinculados ao INCA poderá o paciente postular o medicamento excepcional, não padronizado pelo SUS, e desde que reste comprovado que o tratamento público usualmente fornecido tenha se mostrado ineficaz no combate ao avanço da doença.

Não mais havendo padronização de medicamentos, mas apenas de procedimentos terapêuticos (quimioterapia, radioterapia etc.) para cada tipo e estágio de câncer, a indicação dos fármacos antineoplásicos necessários a cada paciente fica ao encargo dos médicos que integram a Rede de Atenção Oncológica, de acordo com as evidências científicas a respeito e os fatores específicos de cada caso, sendo que tudo deve ser alcançado, como dito, pelo próprio estabelecimento de saúde credenciado, e somente para os pacientes que estiverem recebendo seu tratamento no local.

Os procedimentos oncológicos são realizados através de autorizações (APAC-Onco), nas quais devem constar as informações pertinentes ao tratamento de cada paciente, como diagnóstico, tipo histológico,  bem como o tratamento proposto.

Desta feita, o médico oncologista, dentro de um protocolo estabelecido, tem relativa liberdade para indicar o melhor tratamento para o paciente, com exceções de alguns casos pontuais que apresentam portarias específicas.

Esses procedimentos são periodicamente auditados por gestores ligados ao Ministério da Saúde e, em grande parte, possuem teto remuneratório, que, na verdade, é o maior entrave na efetivação dos tratamentos de câncer, responsável pela imensa maioria das ações de medicamentos antineoplásicos.

E acerca do caso em análise, assim foi o parecer do Núcleo de Assessoria Técnica em Saúde (NATS) do TJPE, cuja conclusão foi a seguinte (Id. 4058300.22468028):

 "O medicamento ABIRATERONA foi incorporado ao SUS a partir da Portaria SCTIE/MS nº 38 de 24 de julho de 2019. A disponibilização do tratamento deve ser realizada pelo CACON/UNACON, que são unidades de alta complexidade no tratamento em oncologia vinculadas ao SUS. Em Pernambuco são habilitados os seguintes centros:

(....)".

Dessa forma, tenho por configurada a probabilidade do direito de acesso ao medicamento, considerando que já há decisão para sua incorporação, de modo que não se vislumbra justificativa para a negativa de fornecimento, especialmente diante da gravidade da doença, que evoluirá com prejuízos clínicos caso não se tenha acesso ao fármaco.

Na hipótese, entraves burocráticos para a implementação da terapia não podem impor limitações ao direito da saúde do paciente, especialmente quando se trata de doença grave.

Por sua vez, a hipossuficiência é atestada por meio da declaração de 4058300.23529813, que deve ser presumidamente aceita para fins de comprovação das frágeis condições financeiras do requerente, que, ressalte-se, está sendo assistido pela Defensoria Pública do Estado de Pernambuco.

Resta, ainda, repita-se, igualmente demonstrado, o perigo de dano, considerando a necessidade do medicamento solicitado para controle da evolução da doença, conforme atestado pelo relatório médico de Id. 4058300.23529816

Nesse sentido, comprovados os requisitos necessários à concessão da tutela provisória de urgência, faz jus o(a) demandante ao fornecimento imediato do medicamento pelo Estado, em caráter de urgência.

3. Dispositivo

Diante de todo o exposto:

a) Defiro a tutela de urgência requerida para determinar que o ESTADO DE PERNAMBUCO forneça ao Autor, no prazo de 10 (dez) dias úteis,  o medicamento  ABIRATERONA (ZYTIGA®) 250mg, nos termos da prescrição médica constante dos autos, sem prejuízo de posteriores compensações financeiras que se fizerem necessárias entre os entes federados na esfera administrativa (vide item 2.1 supra);

b) Determino que o ESTADO DE PERNAMBUCO adote todas as providências administrativas para evitar delongas desnecessárias ao cumprimento desta decisão, autorizando o réu, de logo, caso não possua o(s) medicamento(s) em seus estoques, a adquiri-lo(s) urgentemente,  deixando para momento posterior qualquer ajuste financeiro a ser feito (vide item 2.1 supra);

c) advirto o ESTADO DE PERNAMBUCO de que o desatendimento do prazo assinalado no item b, para o fornecimento da medicação supracitada, nas dosagens e quantidades prescritas, conduzirá à aplicação de multa diária, sem prejuízo do sequestro dos recursos necessários para o cumprimento da obrigação;

d) Intime-se o ESTADO DE PERNAMBUCO para cumprimento desta decisão, no prazo consignado, anexando-se aos expedientes os documentos médicos juntados ao feito;

e) No momento oportuno, digam as partes se há provas a produzir, especificando-as e justificado o seu requerimento (Prazo de 15 dias, contato em dobro em favor da advocacia Pública).

f) Caso não seja requerida a produção de prova, voltem-me os autos conclusos para julgamento.

Cumpra-se, COM URGÊNCIA.

Recife, 23.08.2022.

Francisco Alves dos Santos Júnior

Juiz Federal, 2ª Vara/PE

(lsc)

 _________________________________________________

[1] Disponível em 

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=439095&caixaBusca=N

Acesso em 22.08.2022.

[2] Disponível em

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2565078

Acesso em 23.08.2022.