sábado, 19 de dezembro de 2020

ODONTÓLOGOS X MUNICÍPIOS. PISO NACIONAL DE SALÁRIO E CARGA HORÁRIA. ADPF 151/DF. AUTONOMIA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DOS MUNICÍPIOS E A INDEXAÇÃO PELO SALÁRIO MÍNIMO.

Por Francisco Alves dos Santos Júnior

Discute-se, na sentença infra, o problema do piso nacional de salário e da carga horária dos Dentistas(odontólogos, cirurgiões dentistas), fixado na Lei Federal nº 3.999, de 1961, e as Leis Municipais que não observam essa Lei Federal, mesclando-se com a autonomia político-administrativa dos Municípios, com a regra constitucional que veda a indexação dos vencimentos dos servidores pelo índice do salário mínimo, bem como examinando o último entendimento da Suprema Corte a respeito de problema análogo. 

Boa leitura. 



PROCESSO Nº: 0825378-11.2019.4.05.8300 - AÇÃO CIVIL PÚBLICA

AUTOR: CONSELHO REGIONAL DE ODONTOLOGIA DE PERNAMBUCO
RÉU: MUNICÍPIO DE PALMERINA/PE
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL TITULAR)




Sentença tipo A.


EMENTA:- DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCURSO PÚBLICO. ODONTÓLOGO. PISO SALARIAL. MUNICÍPIO (PREFEITURA MUNICIPAL). LEGISLAÇÃO FEDERAL. NECESSIDADE DE LEI MUNICIPAL QUE A INCORPORE.

-Os Municípios só podem contratar Dentistas(odontólogos, cirurgiões dentistas) quando tiver Lei Municipal própria incorporando no seu universo administrativo o piso nacional e a carga horária para esse tipo de profissional.

-Precedente da Suprema Corte.

-Procedência parcial do pedido.

Vistos etc.

1 - Relatório

O CONSELHO REGIONAL DE ODONTOLOGIA DE PERNAMBUCO, qualificado na Petição Inicial, ajuizou, em 17/12/2019, esta Ação Civil Pública em face da PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRINA. Alegou, em síntese, que: é Autarquia Federal que teria por finalidade zelar pelo perfeito desempenho ético da odontologia, prestígio e bom conceito da profissão; pretenderia, com esta ação, coibir lesão ao erário, e defender o direito coletivo de todos os cirurgiões dentistas eventualmente interessados em participar da Seleção Pública lançada pelo Município/Requerido; a Prefeitura Municipal de Palmeirina/PE teria lançado o Edital nº 01/2019, de 21/10/2019, por meio do qual teria sido aberto Concurso Público para a contratação de 01 (um) Odontólogo; o Edital teria sofrido várias retificações, sendo a última em 09/12/2019; para a referida função, teria sido prevista uma carga horária de 40 horas semanais e vencimentos mensais de R$2.000,00 (dois mil reais), o que estaria em desacordo com o piso estabelecido na Lei nº 3.999/61; assim, muitos profissionais não teriam feito a inscrição, diante da condição e formas ofertadas; estaria previsto para o período de 16 a 18 de dezembro de 2019, a divulgação do gabarito preliminar das provas objetivas e recebimento de recursos; a Lei nº 3.999/61 estabeleceria piso salarial para os cirurgiões dentistas equivalente a três salários mínimos, para uma jornada de 20 horas semanais, que corresponderia a R$2.994,00; a remuneração ofertada não teria coerência com a função de Cirurgião-Dentista, que seria de grande complexidade e essencial para a saúde da população; estariam presentes os requisitos elencados no art. 300 do CPC, para a concessão da tutela de urgência. Teceu outros comentários, e requereu: "a) A concessão da medida liminar, inaudita altera para, determinar a ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO APENAS para a 01 (uma) VAGA de ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA RETIFICADO O EDITAL, mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei Nº 3999/61, reabrindo o período de inscrições; b) A citação do réu para, querendo, contestar a presente demanda; c) Ao final, sejam julgados procedentes os pedidos, confirmando a medida liminar, que determinou ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO APENAS para a 01 (uma) VAGA de ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA RETIFICADO O EDITAL,  mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei Federal Nº 3999/61, reabrindo o período de inscrições; d) Que acaso não seja este o entendimento de Vossa Excelência de "anulação do Concurso Público para a vaga de Cirurgião Dentista, retificação do Edital cumprindo o piso salarial imposto pela Lei Federal Nº 3.999/61 reabrindo o período de inscrições", que seja determinado o pagamento do piso salarial estabelecido na Lei Nº 3.999/61 aos Cirurgiões Dentistas convocados, desde o início de suas atividades; e) A intimação do Ilmo. Representante do Ministério Público para atuar como fiscal da lei; f) A condenação do réu nas custas, honorários e demais ônus da sucumbência; g) A produção de prova exclusivamente documental, tendo em vista se tratar de discussão de direito comprovada por provas pré-constituídas e que deverão ser juntadas pelos réus, conforme requerido no pedido "b";" Atribuiu valor a causa e juntou instrumento de procuração e documentos.

Decisão na qual foi reconhecida a legitimação ativa do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco para ajuizar esta Ação Civil Pública e indeferiu a medida liminar pleiteada.

O E. TRF-5ª Região comunicou a r. Decisão que deferiu, parcialmente, a medida liminar, proferida nos autos do Agravo de Instrumento interposto pelo Impetrante em face da decisão deste Juízo que indeferiu a medida liminar pleiteada na Inicial. O E. TRF-5ª Região determinou a suspensão do concurso público referente ao Edital nº 001/2019, apenas em relação ao cargo de odontólogo.  

Despacho sob id. 4058300.13942555 no qual foi determinada a intimação das Partes para cumprir a r. Decisão acima aludida.

O Ministério Público Federal ofertou r. Parecer no qual opinou pela improcedência dos pedidos formulados na Inicial.

Certificado o decurso do prazo sem que o Réu/Município de Palmerina/PE tenha apresentado sua Contestação, apesar de citado.

É o relatório, no essencial.

Fundamento e decido.

2- Fundamentação

2.1 - Da revelia do Réu e do julgamento antecipado da lide

Ante a certidão da Secretaria de id. nº 4058300.15876695, na qual é atestado o decurso do prazo sem que o Município, ora Réu,  tivesse apresentado Contestação, é de ser decreta a sua revelia sem os respectivos efeitos do art. 344 do CPC/2015, por versar o presente litígio sobre direitos indisponíveis (inciso II do art. 345 do CPC).

Julgo este feito antecipadamente, por não ser necessária qualquer dilação probatória(art. 355, I, CPC).

2.2 - Mérito

2.2.1 - O Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco busca, em sede de medida liminar, a anulação do concurso público regido pelo Edital de Seleção Pública Simplificada n° 001/2019, de 21 de outubro de 2019, promovido pelo Município-Réu, e a retificação do referido Edital mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei 3999/61, com a reabertura das inscrições.

E, no mérito: "(...) sejam julgados procedentes os pedidos, confirmando a medida liminar que determinou ANULAÇÃO DO CONCURSO PÚBLICO APENAS para a 01 (uma) VAGA de ODONTÓLOGO (A). QUE SEJA RETIFICADO O EDITAL,  mediante o cumprimento do piso salarial imposto em Lei Federal Nº 3999/61, reabrindo o período de inscrições;"

Formulou o seguinte pedido subsidiário: "(...) que seja determinado o pagamento do piso salarial estabelecido na Lei Nº 3.999/61 aos Cirurgiões Dentistas convocados, desde o início de suas atividades;"

2.2.2 - Sobre a situação versada nos autos - inobservância por Município (Prefeitura Municipal), na contratação de servidores por concurso público, do piso salarial da categoria profissional dos Odontólogos, estabelecido por lei ordinária federal, o Supremo Tribunal Federal, em feito análogo, deu provimento ao Recurso Extraordinário interposto pelo Conselho de Radiologia da 2ª Região, e restabeleceu, naquele caso concreto, a sentença proferida pelo magistrado de primeira instância, que julgara procedente o pleito autoral.

A decisão do C. STF, abaixo transcrita, mutatis mutandis, aplica-se ao caso dos autos, in verbis:

"RE 1127495 / CE - CEARÁ

RECURSO EXTRAORDINÁRIO

Relator(a): Min. CELSO DE MELLO

Julgamento: 27/11/2019

Publicação

PROCESSO ELETRÔNICO DJe-262 DIVULG 29/11/2019 PUBLIC 02/12/2019

Partes

RECTE.(S): CONSELHO REGIONAL DE TECNICOS EM RADIOLOGIA 2 REGIAO ADV.(A/S) : CARLOS ALBERTO DE PAIVA VIANA RECDO.(A/S) : MUNICÍPIO DE MOMBAÇA ADV.(A/S) : NARCISO LOPES DA COSTA FILHO ADV.(A/S) : PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE MOMBAÇA

DECISÃO: O presente recurso extraordinário resulta da conversão, pelo E. Superior Tribunal de Justiça, do recurso especial que foi interposto pelo Conselho Regional de Técnicos em Radiologia da 2ª Região contra acórdão que, proferido pelo E. Tribunal Regional Federal da 5ª Região, está assim ementado:


"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. REMESSA OFICIAL NÃO CONHECIDA (ART. 475, § 2º, DO CPC/73). APELAÇÃO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO CONSELHO PROFISSIONAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONCURSO MUNICIPAL PARA TÉCNICO EM RADIOLOGIA. CARGA HORÁRIA E PISO SALARIAL. LEI FEDERAL 7.394/85. NÃO APLICAÇÃO FRENTE À AUTONOMIA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DO MUNICÍPIO. PROVIMENTO.

1. Apelação interposta pelo município réu contra sentença que determinou a observância dos parâmetros estabelecidos na Lei Federal 7.394/85, em concurso municipal destinado ao provimento de cargos de Técnicos em Radiologia, no que se refere à carga horária semanal e ao piso salarial desses profissionais.

2. Considerando-se que o valor atribuído à causa é de R$ 1.000,00 (mil reais) e que inexiste condenação de natureza pecuniária, visto que o Juízo singular, na sentença, impôs apenas obrigação de não fazer, incide, aqui, a regra prevista no art. 475, § 2º, do CPC/73, a afastar, portanto, a necessidade do duplo grau de jurisdição obrigatório.

3. Da leitura do art. 12 da Lei 7.394/85 e do art. 23, VIII do Decreto 92.790/86, conclui-se que cabe ao Conselho Regional de Técnicos em Radiologia não só fiscalizar o exercício profissional, como também defender os direitos da respectiva categoria, sendo, portanto, parte legítima para ajuizar a presente ação.

4. Reconhecida, no caso em apreço, a legitimidade ativa do Conselho Regional de Técnicos em Radiologia, autarquia federal (art. 12 do Decreto 92.790/86), a competência da Justiça Federal para processar e julgar a presente lide decorre da expressa dicção do art. 109, I, da Constituição.

5. Os municípios são entidades federadas autônomas (art. 18, CF), de forma que possuem a prerrogativa de dispor sobre a remuneração e o regime de trabalho de seus servidores ocupantes de cargos públicos, não estando vinculados à Lei Federal 7.394/85 no que diz respeito à carga horária e ao piso salarial dos Técnicos em Radiologia.

6. Não há que se falar em invasão da competência legislativa da União para estabelecer 'condições ao exercício das profissões', pois, no caso concreto, em se tratando de cargo público municipal, não se tem uma relação de emprego contratual regida pelo sistema celetista, mas uma relação regulamentada por um estatuto próprio. Precedentes: 08000139120154058106, APELREEX/CE, Rel. Des. Federal RUBENS DE MENDONÇA CANUTO, Quarta Turma, JULGAMENTO: 01/06/2016; 00041381420124050000, AG 124241/PE, Rel. Des. Federal FRANCISCO CAVALCANTI, Primeira Turma, JULGAMENTO: 30/08/2012, DJE 06/09/2012, p. 385.

7. Remessa oficial não conhecida. Apelação provida, julgando-se improcedente o pedido deduzido pelo autor. Sem condenação em honorários (arts. 5º, LXXIII, da CF e 18 da Lei 7.347/85)." (grifei)

A parte ora recorrente, em cumprimento à diligência prevista no art. 1.032, do "caput", do CPC, sustentou que o Tribunal "a quo" teria transgredido o preceito inscrito no art. 22, XVI, da Constituição da República.

O Ministério Público Federal, em pronunciamento da lavra do ilustre Subprocurador-Geral da República Dr. CARLOS ALBERTO VILHENA, opinou pelo provimento do apelo extremo em parecer no qual assentou a seguinte conclusão:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. PRETENSÃO DE SUJEIÇÃO À JORNADA MÁXIMA DE TRABALHO PREVISTA NA LEI FEDERAL QUE ESTABELECE AS CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. NÃO ACOLHIMENTO.

ACÓRDÃO RECORRIDO QUE SE CONTRAPÕE À PACÍFICA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, FIRMADA NO SENTIDO DE COMPETIR À UNIÃO O ESTABELECIMENTO DE CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DE PROFISSÕES, MESMO QUANDO SE TRATA DE SERVIDOR PÚBLICO SUJEITO A REGIME ESTATUTÁRIO PRÓPRIO DO ENTE FEDERATIVO.

AO APRECIAR IDÊNTICA CONTROVÉRSIA, RELATIVA A SERVIDORES MUNICIPAIS QUE EXERCIAM AS PROFISSÕES DE FISIOTERAPEUTA E TERAPEUTA OCUPACIONAL EM DESCONFORMIDADE COM A JORNADA DE TRABALHO MÁXIMA ESTABELECIDA EM LEI FEDERAL, A SUPREMA CORTE DELIBEROU QUE 'A LEI [FEDERAL] N. 8.856/1994, QUE FIXA A JORNADA DE TRABALHO DOS PROFISSIONAIS FISIOTERAPEUTA E TERAPEUTA OCUPACIONAL, É NORMA GERAL E DEVE SER APLICADA A TODOS OS PROFISSIONAIS DA ÁREA TANTO DO SETOR PÚBLICO QUANTO DO PRIVADO' (ARE 758227 AGR). CONCLUSÃO QUE INDEPENDE DA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL - FEDERAL E LOCAL - RELATIVA AOS MENCIONADOS AGENTES PÚBLICOS. MANIFESTAÇÃO PELO PROVIMENTO DO RECURSO." (grifei)

Sendo esse o contexto, passo a examinar a postulação recursal em causa. E, ao fazê-lo, observo que o pleito ora em exame discute um dos postulados estruturantes da organização institucional do Estado brasileiro, qual seja, o princípio da Federação.

Com efeito, a resolução da presente controvérsia constitucional, por isso mesmo, supõe a definição e a identificação da pessoa estatal investida de competência para legislar sobre condições para o exercício de profissões.

Cabe ter presente, no ponto, que a Constituição da República proclama, na complexa estrutura política que dá configuração ao modelo federal de Estado, a coexistência de comunidades jurídicas responsáveis pela pluralização de ordens normativas próprias, que se distribuem segundo critérios de discriminação material de competências fixadas pelo texto constitucional.

O relacionamento normativo entre essas instâncias de poder - União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios - encontra fundamento na Constituição da República, que representa, no contexto político- -institucional do Estado brasileiro, a expressão formal do pacto federal, consoante ressaltam, em autorizado magistério, eminentes doutrinadores (PINTO FERREIRA, "Comentários à Constituição Brasileira", vol. 1/374, 1989, Saraiva; MICHEL TEMER, "Elementos de Direito Constitucional", p. 55/59, 5ª ed., 1989, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 1/216-221, 1988, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição Brasileira de 1988", vol. I/131, item n. 38, 1989, Forense Universitária; RAUL MACHADO HORTA, "Direito Constitucional", p. 309/328, 5ª ed., atualizada por Juliana Campos Horta, 2010, Del Rey, v.g.).

O estatuto constitucional da República, no qual reside a matriz do pacto federal, estabelece entre a União e as pessoas políticas locais uma delicada relação de equilíbrio, consolidada num sistema de discriminação de competências estatais, de que resultam - considerada a complexidade estrutural do modelo federativo - ordens jurídicas parciais e coordenadas entre si, subordinadas à comunidade total, que se identifica com o próprio Estado Federal (cf. HANS KELSEN, comentado por O. A. BANDEIRA DE MELLO, "Natureza Jurídica do Estado Federal", "apud" GERALDO ATALIBA, "Estudos e Pareceres de Direito Tributário", vol. 3/24-25, 1980, RT).

Na realidade, há uma relação de coalescência, na Federação, entre uma ordem jurídica total (que emana do próprio Estado Federal, enquanto comunidade jurídica total, que se expressa, formalmente, nas leis nacionais) e uma pluralidade de ordens jurídicas parciais, que resultam da União Federal (leis federais), dos Estados-membros (leis estaduais), do Distrito Federal (leis distritais) e dos Municípios (leis municipais).

Nesse contexto, as comunidades jurídicas parciais são responsáveis pela instauração de ordens normativas igualmente parciais, sendo algumas de natureza central, imputáveis, nessa hipótese, à União (enquanto pessoa política de caráter central), e outras de natureza regional (Estados- -membros/DF) ou de caráter local (Municípios), enquanto comunidades periféricas revestidas de autonomia institucional.

Essa partilha de competências reflete uma das mais expressivas características do Estado Federal, cujo ordenamento constitucional disciplina, harmoniosamente, competências privativas e competências concorrentes, preservando, assim, a autonomia das unidades que lhe compõem a estrutura jurídico-institucional, investidas, para efeito do concreto exercício das atribuições normativas, de poderes enumerados - que resultam, explícita ou implicitamente, da própria Lei Fundamental - ou, então, de poderes residuais ou remanescentes.

O exame do Estado Federal brasileiro permite que nele se reconheça a possibilidade de a União Federal, no sistema de repartição constitucional de competências estatais, exercer, legitimamente, as atribuições enumeradas que lhe foram conferidas, em caráter privativo, pela Carta Política, sem que a prática dessa competência institucional implique transgressão à prerrogativa básica da autonomia político-jurídica constitucionalmente reconhecida aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios.

É por isso que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em recentíssimo julgamento a propósito de controvérsia assemelhada à ora versada nestes autos, reconheceu pertencer à União Federal - e a esta, apenas - a competência para legislar sobre condições para o exercício de profissões:

"DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. LEI DISTRITAL DE QUE CRIA 'SERVIÇO COMUNITÁRIO DE QUADRA'. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE.

1. A Lei nº 2.763/2001, do Distrito Federal, estabelece condições para o exercício de atividades típicas de policiamento ou segurança ostensivos, tais como o acompanhamento da chegada e a saída de moradores de suas moradias, bem como a vigilância de seus automóveis e residências.

2. O policialmente ostensivo é tarefa de atribuição exclusiva das polícias militares, nos termos do art. 144, § 5º, da Constituição, sendo inviável a sua atribuição a particulares. Já em relação ao exercício de atividades de vigilância e segurança de pessoas e patrimônio, não cabe ao Distrito Federal estabelecer qualquer tipo de regulamentação, pois é de competência privativa da União legislar sobre as condições para o exercício de profissões (Constituição, art. 22, XVI).

3. Procedência do pedido." (ADI 2.752/DF, Rel. Min. Rel. Min. ROBERTO BARROSO - grifei)

Vê-se, daí, que, tratando-se de matéria subsumível à noção de condições para o exercício de profissões, há, em face da privatividade da competência normativa outorgada à União Federal, clara interdição constitucional ao poder do Município legislar sobre esse tema, como tem reiteradamente advertido a jurisprudência desta Corte Suprema (ADI 3.587/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES - ADI 4.387/SP, Rel. Min. DIAS TOFFOLI - ARE 801.013/RS, Rel. Min. TEORI ZAVASCKI - ARE 869.896-AgR/MS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO - ARE 1.077.343/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - ARE 1.229.735/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO - RE 1.211.339/RN, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES - RE 1.221.602/RS, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, v.g.):

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONSTITUCIONAL. PROFISSIONAIS FISIOTERAPEUTAS E TERAPEUTAS OCUPACIONAIS. CARGA HORÁRIA. LEI N. 8.856/1994. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO PARA LEGISLAR SOBRE CONDIÇÕES DE TRABALHO. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO." (ARE 758.227-AgR/PR, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA - grifei)

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. CONDIÇÕES PARA O EXERCÍCIO DE PROFISSÕES. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

I - Compete à União, privativamente, legislar sobre as condições para o exercício de profissões. Precedentes.

II - Agravo regimental a que se nega provimento."

(ARE 970.577-AgR/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI - grifei)

O exame da presente causa evidencia que o acórdão ora impugnado diverge da diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em referência.

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, e acolhendo, ainda, os fundamentos do parecer da douta Procuradoria-Geral da República, dou provimento ao recurso extraordinário, por estar o acórdão recorrido em confronto com entendimento emanado desta Suprema Corte (CPC, art. 932, V, "b"), em ordem a restabelecer a sentença proferida pelo ilustre magistrado de primeira instância. Publique-se.

Brasília, 27 de novembro de 2019.

Ministro CELSO DE MELLO Relator[1]"

No caso em apreço, o E. TRF-5ª Região, ao julgar o mérito do Agravo de Instrumento interposto pelo Autor, determinou a suspensão do concurso em relação ao cargo de odontólogo e confirmou a liminar recursal parcialmente deferida, in verbis:

"EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. TUTELA DE URGÊNCIA PISO SALARIAL PARA ONDONTÓLOGO. PREVALÊNCIA DA LEGISLAÇÃO FEDERAL. DESNECESSIDADE DE CANCELAMENTO DO CONCURSO COMO MEDIDA DE URGÊNCIA. AGRAVO PROVIDO PARA DEFERIR SUSPENSÃO DO CERTAME.  

1. Trata-se de agravo de instrumento interposto pelo Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco contra decisão, em sede de ação civil pública, que indeferiu a concessão de tutela de urgência na qual se requeria a anulação do concurso público para apenas uma vaga de odontólogo, com a retificação do edital para cumprir o piso salarial imposto pela Lei nº 3.999/61, com a reabertura das inscrições.

2. O cerne da presente controvérsia consiste em perquirir o cabimento da aplicação da Lei nº 3.999/61 para cirurgião dentista enquanto servidor estatutário municipal.

3. No que tange à vinculação ao salário mínimo operada pela Lei nº 3.999/61, a Constituição da República de 1988 proíbe tão somente que o salário mínimo sirva para corrigir automaticamente outras verbas salariais, como indexador, uma vez que tal vinculação poderia servir de obstáculo à majoração do salário mínimo, tendo em vista que geraria outros aumentos, ocasionando inflação. A Lei 3.999/61, portanto, é constitucional na medida em que determina apenas que a admissão dos cirurgiões dentistas deve ser feita com o respeito ao piso de 3 salários mínimos. Assim, não indica o diploma legal que deva haver reajuste automático do salário quando há aumento do salário mínimo. É dizer: os empregados da categoria devem ser contratados com o salário inicial equivalente a 2 salários mínimos, sendo reajustado, nos anos posteriores após a contratação, com o adicional previsto nas Convenções Coletivas de Trabalho. No mesmo sentido: Rcl nº 9.674/SP-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 19/10/15; ARE nº 914.780/DF-AgR, Segunda Turma, de minha relatoria, DJe de 7/3/16).

4. A Constituição Federal estabelece que é competência privativa da União legislar sobre as condições para o exercício de profissões (art. 22, XVI). Por outro lado, o preenchimento dos cargos, empregos e funções públicas se dará na forma da lei, segundo o art. 37, I da Carta Magna.

5. Assim, existente legislação federal sobre o assunto, prevalece, em virtude de competência, a norma federal em detrimento da norma municipal, o que limita a autonomia do município, tornando obrigatório o cumprimento das disposições da Lei nº 3.999/61, que regula o exercício da profissão de cirurgião dentista, no que tange ao preenchimento de cargo de profissional desta área. Precedentes: PROCESSO Nº 0808523-25.2019.4.05.0000, Desembargador Federal Fernando Braga Damasceno, Terceira Turma, julgado em 22/10/2019; PROCESSO Nº 0804963-17.2015.4.05.0000, Desembargador Federal Cid Marconi Gurgel de Souza, Terceira Turma, julgado em 13/11/2015; PROCESSO Nº 0800015-18.2016.4.05.8303, Desembargador Federal Paulo Roberto de Oliveira Lima, Segunda Turma, julgado em 14/11/2018; PROCESSO Nº 0805265-59.2016.4.05.8100, Desembargador Federal Francisco Roberto Machado, Primeira Turma, julgado em 30/08/2018.

6. Apesar de plausível o direito alegado e de se verificar o risco na demora a justificar a concessão de tutela de urgência no caso concreto, não se faz necessário, para mitigar os efeitos da demora, que seja anulado o certame, sendo a suspensão do concurso medida suficiente para evitar o prejuízo alegado.

7. Agravo parcialmente provido para determinar a suspensão do concurso em relação ao cargo de odontólogo, confirmando a liminar recursal parcialmente deferida. (PROCESSO: 08010314520204050000, AGRAVO DE INSTRUMENTO, DESEMBARGADORA FEDERAL ISABELLE MARNE CAVALCANTI DE OLIVEIRA LIMA (CONVOCADA), 3ª TURMA, JULGAMENTO: 22/10/2020[2])

Tanto a Lei que fixa piso salarial de três salários mínimos para os odontólogos(Lei  3.999, de 1961), como a Lei que fixa piso salarial de dois salários  mínimos para Técnico em Radiologia(Lei 7.384, de 1985) são anteriores à vigente Constituição da República que veda, expressamente, a utilização do salário  mínimo para  tal finalidade(art. 7º: "IV - salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim";).

Estranho, pois, que o Supremo Tribunal Federal, em 2019, no julgamento do Recurso Extraordinário acima indicado, tenha considerado constitucional a Lei nº 7.384, de 1985, quando fixa o acima referido piso salarial para Técnico em Radiologia, em dois salários mínimos, ferindo, assim, a acima transcrita regra constitucional.

Mas, essa Corte Maior corrigiu-se, relativamente a essa mesma Lei, no julgamento da ADPV 151/DF, que ficou com a seguinte ementa:

"ADPF 151

Ementa

Ementa: Direito do Trabalho. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Piso salarial dos técnicos em radiologia. Adicional de insalubridade. Indexação ao salário mínimo. Medida cautelar confirmada. 1. inconstitucionalidade da indexação de piso salarial ao valor do salário mínimo. 2. Congelamento da base de cálculo, a fim de que seja calculada de acordo com o valor de dois salários mínimos vigentes na data de estabilização da decisão que deferiu a medida cautelar. Não-recepção do art. 16 da Lei nº 7.394/1985. 3. Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada procedente.".[3]

No julgado por último referido, a Suprema Corte, enfim, mandou cumprir a acima transcrita regra constitucional.

Extrai-se dos mencionados julgados da nossa Corte Maior que, aqui, cabe-me apenas vedar o Município ora Réu a dar continuidade ao mencionado concurso, com relação aos Odontólogos, qual seja, anular o respectivo item do edital, porque inobserva o piso salarial e a carga honorária para esses profissionais, fixados na acima referida  Lei Federal nº 3.999, de 1961.

Realmente, o Judiciário não pode obrigar referido Município a contratar odontólogo com o noticiado piso nacional de salário e a referida  carga honorária, pois tal Município só poderá assim  proceder, por conta da sua autonomia  político-administrativa,  depois que a sua Câmara Municipal baixar Lei nesse sentido e,  nas respectivas Leis Orçamentárias, criar a respectiva dotação orçamentária, pois nenhum Chefe de Poder Executivo Municipal pode efetuar gastos que não estejam autorizados por Lei própria.

E, à luz do último julgado da Suprema Corte, na ADPF 151/DF, deverá estabelecer na Lei Municípal o estabelecido na Lei Federal nº 3.999, de 1961, para odontólogos, relativamente à respectiva carga horária e, quanto aos vencimentos, apenas fixar o valor correspondente a três salários mínimos, hoje R$ 3.135,00(três mil, cento e trinta e cinco reais), já que um salário mínimo monta em R$ 1.045,00, e, doravante, estabelecer o reajuste  pelo índice de atualização próprio para reajustes de vencimentos dos seus Servidores, uma  vez que há regra na Constituição, como vimos acima, vedando que se tome o índice de reajuste do salário mínimo para indexação de qualquer valor,  mormente de vencimentos de servidores públicos, porque geraria inflação, uma vez que o salário mínimo goza, regra geral, de atualização por índice superior aos demais índices.

Como se sabe, nesse sentido há antigos julgados do Supremo Tribunal Federal estabelecendo que os Municípios não podem aplicar diretamente, na sua órbita administrativa, em face da sua autonomia político-administrativa, Leis Federais, sejam ordinárias, sejam complementares, pois os seus Vereadores, que representam os interesses da sua população, têm, antes, que incorporar a regra federal na órbita  municipal, por Lei própria.

3- Dispositivo

Posto ISSO,

3.1- Decreto a revelia do Município-Réu,  sem os respectivos efeitos (CPC, art. 345, II);

3.2 - julgo parcialmente procedentes os pedidos desta ação e decreto a nulidade do item do edital em debate, relativo ao concurso para  odontólogo com vencimento e carga horária diversos dos fixados na   Lei Federal nº 3.999/61, facultando-lhe, observado o consignado na fundamentação supra, após o advento de Leis Municipais próprias, a realização de outra concurso para tal fim.  e extingo o processo com resolução do mérito (CPC, art. 487, I).

Custas na forma da lei.

Sem honorários (Lei nº 7.347/85, art. 18).

De ofício, submeto esta sentença ao duplo grau de jurisdição.

R.I.

Recife, 19.12.2020.

Francisco Alves dos Santos Júnior

Juiz Federal da 2ª Vara Federal da JFPE

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

LIMITE DE VALOR PARA PARCELAMENTO, FIXADO EM ATO NORMATIVO ADMINISTRATIVO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.

Por Francisco Alves dos Santos Júnior


Na decisão infra, indica-se a fundamentação legal que permite ao Juiz decidir quanto à medida liminar, mesmo quando há determinação do STJ para suspender o andamento dos processos porque o assunto encontra-se sob julgamento em  andamento submetido a efeito repetitivo, e demonstra-se que limite de valor para parcelamento, fixado em ato infralegal, não é admitido no nosso ordenamento jurídico. 

Boa leitura. 


 PROCESSO Nº: 0819644-45.2020.4.05.8300 - MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL

IMPETRANTE: IBGM -  EPP
ADVOGADO: S C O A F 
IMPETRADO: UNIAO FEDERAL/FAZENDA NACIONAL
2ª VARA FEDERAL - PE (JUIZ FEDERAL SUBSTITUTO)

DECISÃO

1. Relatório

IBGM - , qualificada na Inicial, impetrou este Mandado de Segurança em face de ato do Ilmº. Sr. DELEGADO DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL EM RECIFE, autoridade integrada na administração direta da UNIÃO (FAZENDA NACIONAL), cujo objeto é determinar que a Autoridade Impetrada se abstenha de aplicar a limitação constante do art. 16 da IN RFB nº 1891/2019, que impede a inclusão de débitos superiores a R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais), no parcelamento simplificado, e de adotar qualquer medida punitiva contra a Impetrante, em decorrência do parcelamento simplificado requestado.

Alegou, em sínese, que:  a Impetrante seria pessoa jurídica que se dedicaria à educação superior com graduação e pós graduação, dentre outros, e teria sido afetada pela aguda crise, assim como grande parte das empresas; após o balanço anual, teria verificado a existência de débitos tributários, pretendendo, assim, regularizá-los mediante o parcelamento estabelecido pelo art. 14-C (modalidade simplificada) da Lei nº 10.522/2002; a sua pretensão, todavia, encontraria óbice no art. 16 da IN RFB nº 1891/2019, que teria criado limite de valor para a concessão de parcelamento simplificado, que não estaria previsto em lei; a impossibilidade de regularização de tais débitos tributários estaria obstaculizando a emissão de certidões de regularidade fiscal para a Impetrante e inviabilizando a renovação do PROUNI, bem como a obtenção de financiamentos e empréstimos bancários; o mencionado dispositivo da IN RFB nº 1.891/2019 extrapolaria o poder regulamentar conferido pela Lei nº 10.522/2009, e violaria o CTN (arts. 97, IV, 99, 100 e 155-A), e violaria o princípio constitucional da legalidade (arts. 5º, II e 37), jurisprudência do E. STJ e TRF-5ª Região. Teceu outros comentários, e requereu:

"(...) a expedição de ordem judicial determinando à Autoridade Coatora, por si e/ou por seus subordinados, que adotem as medidas administrativas necessárias a fim de proceder com o parcelamento simplificado dos débito em nome da parte Impetrante, sem a limitação imposta pelo art. 16 da Instrução Normativa RFB nº 1891/2019, que impede a inclusão de débitos superiores a R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) no parcelamento simplificado, bem como que se abstenha de adotar qualquer medida punitiva contra a Impetrante, em decorrência do parcelamento simplificado ora requestado."

E formulou os seguintes requerimentos finais:

"(a) ante a presença dos requisitos legais, seja deferida a ordem liminar requisitada, inaudita altera parte, nos exatos termos pedidos no presente "writ"; (b) esse MM. Juízo determine a notificação do Impetrado para prestar as informações necessárias, no prazo legal; (c) seja instado o Ministério Público Federal a oferecer seu parecer sobre a causa, na forma da lei; (d) cumprido o iter procedimental regular, seja confirmada a ordem liminar e concedida a segurança pretendida, para que a Autoridade Coatora, por si ou seus agentes, se abstenha de aplicar a ilegal limitação constante do art. 16 da IN RFB nº 1891/2019, que impede a inclusão de débitos superiores a R$ 5.000.000,00 (um milhão de reais) no parcelamento simplificado, adotando as medidas administrativas cabíveis para sua regular implementação e se abstenha de adotar qualquer medida punitiva contra a Impetrante, em decorrência do parcelamento simplificado requestado; (e) Condenação do Impetrado ao ressarcimento das custas processuais."

Inicial instruída com procuração e documentos.

Em seguida, a Impetrante comprovou o recolhimento das custas processuais iniciais.

É o relatório, no essencial.

Passo a decidir.

 2. Fundamentação

2.1- A questão trazida aos autos está submetida a julgamento pelo E. STJ, em Tema/Repetitivo de nº 997, com determinação de suspensão de todas as demandas que versem acerca da legalidade do estabelecimento, por atos infralegais, de limite máximo para a concessão do parcelamento simplificado, instituído pela Lei 10.522/2002 (Tema 997).

Todavia, as determinações de suspensão em sede de recurso repetitivo não afastam, de regra, a necessidade de analisar pedido de medida liminar ou de tutela provisória de urgência, em face de questão que tenha que resolvida de plano, sob pena de restar afrontado o direito fundamental da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF).

Com efeito, é adequada a aplicação por analogia da regra inserta no art. 982, §2º, do CPC, relativa ao sobrestamento de processos pela admissão de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas ("Durante a suspensão, o pedido de tutela de urgência deverá ser dirigido ao juízo onde tramita o processo suspenso") cumulada com a disposição contida no art. 314 do CPC ("Durante a suspensão é vedado praticar qualquer ato processual, podendo o juiz, todavia, determinar a realização de atos urgentes a fim de evitar dano irreparável, salvo no caso de arguição de impedimento e de suspeição").

Assim, mesmo que a questão controvertida se amolde à previsão do recurso repetitivo, necessária a análise do pedido de medida liminar, por envolver questão de urgência relativamente a sobrevivência empresarial da Impetrante.

2.2- Do pleito liminar propriamente dito

Pretende a Impetrante obter provimento jurisdicional que lhe assegure a inclusão dos débitos tributários exigíveis perante a Receita Federal no parcelamento simplificado previsto no art. 14-C da Lei 10.522/02, afastando-se a limitação imposta pelo artigo 16 da Instrução Normativa nº 1.891/2019 c/c a Portaria PGFN/RFB n.859/2019 que alteraram as disposições da Portaria 15/2009 da PGFN, para que consiga, após a realizar os parcelamentos fiscais, proceder com a retirada da CND.

A concessão de medida liminar em mandado de segurança exige a presença simultânea dos dois pressupostos estabelecidos no inciso III do artigo 7º da Lei nº 12.016/2009, quais sejam, demonstração da relevância do fundamento (fumus boni iuris) e perigo da demora (periculum in mora).

 Pois bem.

Inicialmente, confira-se a redação dos artigos 14-C, 14-D e 14-E, da Lei n. 10.522/2002:

"Art. 14-C. Poderá ser concedido, de ofício ou a pedido, parcelamento simplificado, importando o pagamento da primeira prestação em confissão de dívida e instrumento hábil e suficiente para a exigência do crédito tributário.

Parágrafo único. Ao parcelamento de que trata o caput deste artigo não se aplicam as vedações estabelecidas no art. 14 desta Lei. (Artigo acrescido pela Medida Provisória nº 449, de 3/12/2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27/5/2009)

Art. 14-D. Os parcelamentos concedidos a Estados, Distrito Federal ou Municípios conterão cláusulas em que estes autorizem a retenção do Fundo de Participação dos Estados - FPE ou do Fundo de Participação dos Municípios - FPM.

Parágrafo único. O valor mensal das obrigações previdenciárias correntes, para efeito deste artigo, será apurado com base na respectiva Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e de Informações à Previdência Social - GFIP ou, no caso de sua não-apresentação no prazo legal, estimado, utilizando-se a média das últimas 12 (doze) competências recolhidas anteriores ao mês da retenção prevista no caput deste artigo, sem prejuízo da cobrança ou restituição ou compensação de eventuais diferenças. (Artigo acrescido pela Medida Provisória nº 449, de 3/12/2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27/5/2009)

Art. 14-E. Mensalmente, a Secretaria da Receita Federal do Brasil e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional divulgarão, em seus sítios na internet, demonstrativos dos parcelamentos concedidos no âmbito de suas competências. (Artigo acrescido pela Medida Provisória nº 449, de 3/12/2008, convertida na Lei nº 11.941, de 27/5/2009)"

Infere-se dos dispositivos acima transcritos que não há, de fato, nenhuma limitação ao valor total a ser incluído no parcelamento. Não há, da mesma forma, autorização para que norma infralegal o faça. Por sua vez, ao regulamentar o parcelamento simplificado, a Instrução Normativa RFB Nº 1891, DE 14 DE MAIO DE 2019, limitou o parcelamento ao montante de R$ 5.000.000,00, nos seguintes termos:

"Art. 16. Poderá ser concedido parcelamento simplificado para pagamento de débitos cujo valor seja igual ou inferior a R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais). É certo, por um lado, que a outorga de parcelamento é uma faculdade do credor, que estipula as condições e os requisitos para que possa ser permitido, sendo que quando o Credor é um Ente Público essas condições e requisitos são fixados em Lei, que também vincula esse Ente Público Credor, o qual não pode, por ato normativo próprio, modificar o que se encontra consignado em Lei, uma vez que esta só poderá sofrer qualquer modificação por meio de outra Lei."

Confira-se, por oportuno, o artigo 14-A da Lei nº 10.522, de 2002:

"Art. 14-A. Observadas as condições previstas neste artigo, será admitido reparcelamento de débitos constantes de parcelamento em andamento ou que tenha sido rescindido. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)

§ 1o No reparcelamento de que trata o caput deste artigo poderão ser incluídos novos débitos. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)

§ 2o A formalização do pedido de reparcelamento previsto neste artigo fica condicionada ao recolhimento da primeira parcela em valor correspondente a: (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)

I - 10% (dez por cento) do total dos débitos consolidados; ou (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)

II - 20% (vinte por cento) do total dos débitos consolidados, caso haja débito com histórico de reparcelamento anterior. (Incluído pela Lei nº 11.941, de 2009)"

Como se extrai dessas disposições legais, não há "teto" para o valor do parcelamento ou autorização para que norma infralegal o institua.

Deve, portanto, ser afastada a restrição instituída pela Portaria.

Neste sentido, colaciono o seguinte precedente do TRF/5ª Região, aplicável mutatis mutandis ao caso em questão:

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE ADESÃO A PARCELAMENTO SIMPLIFICADO. LIMITAÇÃO ESTABELECIDA EM PORTARIA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL. DESPROVIMENTO DO APELO E DA REMESSA.

 1. Caso em que a postulação do impetrante é o provimento jurisdicional para determinar à Receita Federal para que se abstenha de aplicar a limitação contida no artigo 29, da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 15/2009, porque ilegal, dado que impede o contribuinte de incluir débitos previdenciários, vencidos, no parcelamento simplificado (art. 14-F da lei 10.522/02) em valores superiores a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Concedida a segurança, apela o Fisco Federal defendendo a compatibilidade do ato regulamentar com a legislação, ao argumento que o legislador lhe delegou tal mister.

 2. Data vênia, com a razão a sentença em primeiro grau de jurisdição proferida. É verdade que a Lei 10.522/2002 prevê o parcelamento de débitos de qualquer natureza para com a Fazenda Nacional, conforme dispõe o art. 10, bem como estabelece as vedações ao parcelamento, consoante preconizado em seu art. 14. No entanto, a própria Lei 10.522/2002 prevê em seu art. 14-C, parágrafo único, incluído pela Lei 11.941/09, a inaplicabilidade das "vedações" (estabelecidas no art. 14), ao parcelamento simplificado.

 3. Logo, se a própria Lei 10.522/2002, que dispõe sobre o parcelamento simplificado, não impôs limites de valores pra tanto, não há como a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 15/09 inovar sobre matéria que a lei ordinária não dispõe, sob pena de violação ao princípio da reserva legal em matéria tributária. Em suma, não é dado à Administração desbordar da Lei ao regulamentá-la.

 4. Aliás, mantendo-se essa resistência, o Fisco estará se afastando da própria finalidade da norma que regula o parcelamento, é dizer, do interesse público de receber o seu crédito, ainda que de forma parcelada. É preciso que se evidencie, nesse caso, a essência própria do parcelamento fiscal, a qual consiste em proporcionar aos contribuintes inadimplentes forma menos onerosa de quitação dos débitos tributários, a fim de que passem a gozar de regularidade fiscal e dos benefícios daí advindos, facilitando, concomitantemente, a arrecadação de créditos tributários de difícil ou incerto resgate por parte da Fazenda, mediante a fixação de prestações mensais contínuas.

 5. Apelação e remessa oficial desprovidas.

(PROCESSO: 08185410820174058300, AMS/PE, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, 2ª Turma, JULGAMENTO: 02/05/2018, PUBLICAÇÃO: )

Diante de todo o exposto, tenho por presente o fumus boni iuris.

O periculum in mora encontra-se igualmente presente, visto que a Impetrante necessita estar em situação de regularidade fiscal para manter suas atividades empresariais, sob pena de vir à bancarrota, o que não será bom nem mesmo para o País, pois apenas agravará o problema social do desemprego.

3. Conclusão

Diante de todo o exposto:

a)   concedo a pretendida medida liminar e determino que a DD Autoridade apontada como coatora aceite pedido formulado pela Impetrante, de parcelamento simplificado previsto no art. 14-C da Lei n. 10.522/02, dos débitos tributários da Impetrante exigíveis perante a Receita Federal, permitindo à Impetrante realizar os pagamentos na referida modalidade de parcelamento, afastando-se a limitação imposta pelo art. 16 da Instrução Normativa 1.891/2019, para que consiga, após a realizar os parcelamentos fiscais, proceder com a retirada da CPDEN - Certidão Positiva de Débito com Efeito de Negativa, se outros motivos não existirem para a não expedição dessa certidão;

b) notifique-se a DD Autoridade coatora para apresentação de informações (art. 7º,I, da Lei nº 12.016, de 2009), bem como para cumprir o acima decidido, sob as penas do art. 26 da Lei nº 12.016, de 2009;

c)    outrossim, dê-se ciência desde writ ao órgão de representação judicial da UNIÃO(a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional em Recife-PE), para os fins do inciso II do art. 7º da Lei nº 12.016, de 2009.

d)  devem os integrantes do polo passivo, ainda, manifestarem-se, no prazo destinado às Informações, sobre a suspensão processual temporariamente afastada (vide item 2.1 supra);

e)    sucessivamente, voltem-me os autos conclusos.

f)     cumpra-se com urgência.

Intimem-se.

Recife, 16.12.2020

   Francisco Alves dos Santos Júnior

    Juiz Federal da 2ª Vara da JFPE

(rmc)