Por Francisco Alves dos Santos Júnior.
Na sentença que segue, discute-se o império do princípio da legalidade no sistema constitucional brasileiro, considerando-se inconstitucional regras de Portaria de Ministros que limitavam a possibilidade do gozo de benefício fiscal pelos Contribuintes.
Boa leitura.
PODER JUDICIÁRIO
JUSTIÇA FEDERAL DE PRIMEIRA INSTÂNCIA
Seção Judiciária de
Pernambuco
2ª
VARA
Juiz Federal: Francisco Alves dos Santos Júnior
Processo
nº 0003878-632012.4.05.8300 - Classe 126 – Mandado de Segurança
Impetrante: CBS S/A C B DE S
Adv.: A L – OAB/SP
Impetrado:
DELEGADO DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL EM RECIFE
Registro nº
..............................................
Certifico que esta Sentença às
fls..............
Recife, ........./........../2012.
Sentença Tipo A
EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. BENEFÍCIO LEGAL. LIMITAÇÃO POR ATOS
INFRALEGAIS.
- Atos infralegais não podem impor limitações e/ou condições a benefício
fiscal concedido por Medida Provisória, que tem força de Lei(artigos 5º, II e
150, I, da Constituição da República).
- Concessão da segurança definitiva.
Vistos etc.
Às fls. 251/251-vº, ficou
determinado que o pedido de concessão da medida liminar seria apreciado após as
informações.
A União manifestou seu
interesse no feito (fl. 258).
Notificado, o SUPERINTENDENTE
DA SUPERINTENDÊNCIA REGIONAL DA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL – 4ª
REGIÃO FISCAL apresentou suas Informações, às fls. 260/266, sustentando que o
benefício contido no art. 3º da Medida Provisória nº 470/2009, encerraria a
hipótese de recolhimento à vista ou de parcelamento com remissão parcial de
tributos e anistia total ou parcial de penalidades; que, para a consecução do
pagamento à vista ou do parcelamento, o legislador também teria facultado a
utilização de saldos de prejuízo fiscal ou de base de cálculo negativa relativa
à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL; que caberia ao optante a
apresentação de pedido de parcelamento, ou de pagamento à vista, com
discriminação dos débitos sujeitos ao benefício em tela; que o Impetrante teria
optado pelo pagamento à vista, mediante quitação pela sistemática de utilização
do prejuízo fiscal; que um dos processos administrativos, em que o Impetrante
pleiteara o ressarcimento e compensação dos supostos créditos-prêmio do IPI,
estaria sendo apreciado pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais –
CARF, em sede de recurso voluntário; que, relativamente ao processo
administrativo nº 13403.000326/2003-05, os débitos decorrentes da utilização
indevida dos supostos créditos-prêmio de IPI da Impetrante teriam sido
considerados como insuscetíveis de serem beneficiados pelo disposto na Medida
Provisória nº 470/2009, em face da não apresentação de tempestiva
declaração de desistência recursal, em
concordância com o disposto no art. 7º da Portaria PGFN/RFB nº 9, de 2009; que
a Medida Provisória nº 470/ 2009, autorizaria a fruição do benefício apenas
mediante o pagamento ou parcelamento até o dia 30 de novembro de 2009; que,
enquanto persistisse alguma das situações descritas no art. 151 do CTN, seria
vedado ao sujeito ativo o poder de exigir o adimplemento dos débitos de
responsabilidade do contribuinte; que a protocolização de desistência do
recurso administrativo em data posterior à preconizada pela norma infralegal,
se acatada, representaria a conformação da desigualdade de tratamento entre os
contribuintes alcançados pelo benefício fiscal; que o regulamento seria
modalidade de ato normativo subordinado à lei, sendo-lhe vedado dispor de forma
contrária ao estabelecido no diploma legal referente; que a Constituição
vedaria a imposição de obrigações primárias por intermédio de norma de nível
inferior à lei; que a estipulação de obrigações secundárias pela via dos atos
normativos infralegais afigurar-se-ia perfeitamente possível, desde que tais
determinações não se revelassem inadequadas frente às disposições primárias
estabelecidas em diploma legal. Teceu outros comentários. Ao final, pugnou pela
denegação da segurança.
Notificado, o DELEGADO DA
RECEITA FEDERAL DO BRASIL EM RECIFE (PE) apresentou Informações, às fls.
269/274, argumentando que o benefício contido no art. 3º da Medida Provisória
nº 470/2009, encerraria a hipótese de recolhimento à vista ou de parcelamento
com remissão parcial de tributos e anistia total ou parcial de penalidades;
que, para a consecução do pagamento à vista ou do parcelamento, teria sido
facultada a utilização de saldos de prejuízo fiscal ou de base de cálculo
negativa relativa à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL; que o contribuinte
teria optado pelo pagamento à vista, mediante quitação pela sistemática de
utilização do prejuízo fiscal; que um dos processos administrativos, em que a
Impetrante pleiteara o ressarcimento e compensação dos supostos créditos-prêmio
do IPI, estaria sendo apreciado pelo Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais-CARF, em sede de recurso voluntário; que, relativamente ao processo
administrativo nº 13403.000326/2003-05, os débitos decorrentes da utilização
indevida dos supostos créditos-prêmio de IPI da Impetrante teriam sido
considerados insuscetíveis de serem beneficiados pelo disposto na Medida
Provisória nº 470/2009, em face da não apresentação de tempestiva declaração de
desistência recursal, em concordância com o disposto no art. 7º da Portaria
PGFN/RFB nº 9, de 2009; que referida Medida Provisória teria autorizado a
fruição do benefício apenas mediante o “pagamento ou parcelamento até o dia 30
de novembro de 2009” ;
que a protocolização de desistência do recurso administrativo em data posterior
à preconizada pela norma infralegal, se acatada, representaria a confirmação de
desigualdade de tratamento, em detrimento dos demais contribuintes; que
regulamento seria modalidade de ato normativo subordinado à lei, sendo-lhe
vedado dispor de forma contrária ao estabelecido no diploma legal; que, no
entanto, a estipulação de obrigações secundárias por intermédio de atos
normativos infralegais afigurar-se-ia perfeitamente possível, desde que tais
determinações não se revelassem inadequadas frente às disposições primárias
estabelecidas em diploma legal; que o comando veiculado no caput do art. 7º da Portaria PGFN/RFB nº 9, de 2009, seria
pertinente e necessário. Ao final, requereu a denegação da segurança pleiteada.
Às fls. 280/281-vº, restou
concedida a liminar.
A Receita Federal informou
que o processo 13403.000326/2003-05 teria sido incluído no parcelamento
instituído pela Medida Provisória nº 470/2009; que o processo
13403.000140/2002-67 encontrar-se-ia no Conselho Administrativo de Recursos
Fiscais (CARF), com sede em Brasília; que o CARF ainda não teria devolvido
mencionado processo, apesar de assim solicitado (fl. 288). Juntou documentos
(fls. 289/294).
À fl. 297, a União noticiou a
interposição de Agravo de Instrumento, juntando cópia do referido recurso (fls.
298/307).
Mantida a decisão agravada
(fl. 309).
O Ministério Público Federal ofereceu o
r. Parecer de fls. 311/312, arguindo, em suma, que, não haveria interesse
público, evidenciado pela natureza da lide e pela qualidade da parte, a
justificar a intervenção ministerial nestes autos.
Vieram os autos conclusos para
julgamento.
A Medida Provisória nº 470/2009 permitia
que os contribuintes pagassem ou parcelassem dívidas tributárias, com inúmeras
vantagens, tais como exclusão de multas e de juros, e com utilização de
prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido próprio.
É o que se verifica na redação do seu
art. 3º, verbis:
Art. 3o Poderão ser pagos ou parcelados, até 30 de
novembro de 2009, os débitos decorrentes do aproveitamento indevido do
incentivo fiscal setorial instituído pelo art. 1o do Decreto-Lei no 491, de 5
de março de 1969, e os oriundos da aquisição de matérias-primas, material de
embalagem e produtos intermediários relacionados na Tabela de Incidência do
Imposto sobre Produtos Industrializados - TIPI, aprovada pelo Decreto no 6.006,
de 28 de dezembro de 2006, com incidência de alíquota zero ou como não
tributados - NT.
§ 1o Os
débitos de que trata o caput deste artigo poderão ser pagos ou parcelados em
até doze prestações mensais com redução de cem por cento das multas de mora e
de ofício, de noventa por cento das multas isoladas, de noventa por cento dos
juros de mora e de cem por cento do valor do encargo legal.
§ 2o As
pessoas jurídicas que optarem pelo pagamento ou parcelamento nos termos deste artigo
poderão liquidar os valores correspondentes aos débitos, inclusive multas e
juros, com a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido próprios, passíveis de compensação,
na forma da legislação vigente, relativos aos períodos de apuração encerrados
até a publicação desta Medida Provisória, devidamente declarados à Secretaria
da Receita Federal do Brasil.
§ 3o Na
hipótese do § 2o deste artigo, o valor a ser utilizado será determinado
mediante a aplicação sobre o montante do prejuízo fiscal e da base de cálculo
negativa das alíquotas de vinte e cinco por cento e nove por cento,
respectivamente.
§ 4o A
opção pela extinção do crédito tributário na forma deste artigo não exclui a
possibilidade de adesão ao parcelamento previsto na Lei no 11.941, de 27 de
maio de 2009.
2.1) Antes de tudo cabe analisar se o pleito
administrativo da ora Impetrante encontrava-se sob o pálio da Medida Provisória
470, de 2009[1], porque o prazo, para tanto, conforme art. 3º
desse ato legal, acima transcrito, era 30
de novembro de 2009.
A Impetrante, na peça inicial, alega que
protocolou o seu pedido, na via administrativa, em 26.11.2009, pleito esse que teria dado origem ao processo
administrativo nº 13403.000.366/2009-34.
Esse fato foi confirmado pela Autoridade apontada como coatora(v. fl. 261 dos
autos).
Então, mencionado pleito administrativo
teria que ter sido analisado à luz dessa Medida Provisória.
O fato “pedido de desistência”, que teria
instruído o pedido inicial, foi negado por mencionada Autoridade nas suas
informações, segundo a qual a Impetrante só formulara esse pedido em
02.05.2011(fl. 261). E, diante dessa situação, continuou a Autoridade apontada
como coatora, como esse pedido fora protocolado em data posterior a 30.11.2009,
que era o prazo limite fixado no art. 7º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 9, de
2009, o seu pleito fora indeferido na primeira instância administrativa, mas,
na segunda instância, diante de recurso administrativo da ora Impetrante,
admitiu-se a quitação da dívida relativa ao processo administrativo nº 13403.000326/2003-05,
porque não já se encontrava pendente de análise recursal, mas a decisão de
primeira instância fora mantida com relação à dívida do processo nº 13403.000140/2002-67.
A questão principal a ser decidida é se
essa exigência da referida Portaria poderia criar mencionada exigência.
Note-se, desde já, que, mesmo não tendo a
Impetrante, segundo a Autoridade apontada como coatora, cumprido essa exigência
com relação aos dois processos administrativos, o julgador de segundo grau
administrativo reconheceu o pleiteado direito da Impetrante relativamente a um
dos processos administrativos, numa demonstração cabal de que o “pedido de
desistência” não tinha nenhuma importância.
3. Não consta da Medida Provisória nº 470,
de 13.10.2009, nenhuma regra limitando a utilização do benefício fiscal nela
permitido a comprovação de desistência dos processos administrativos nos quais
eram pleiteados créditos tributários.
A única limitação era que o pleito fosse
protocolado até 30 de novembro de 2009, limitação essa que, como acima
demonstrado, foi rigidamente observada pela ora Impetrante.
Os atos normativos secundários, a exemplo
das Portarias expedidas pelo Poder Executivo e por seus Órgãos, devem subordinar-se
às Leis (e, no Brasil, Medida Provisória tem força de Lei Ordinária, conforme
art. 62 e respectivos parágrafos da Constituição da República, com redação dada
pela Emenda Constitucional nº 32), não podendo extrapolar os limites do poder
regulamentar, sob pena de incorrer em flagrante ofensa ao princípio da legalidade.
Como se observa, a aludida Portaria inovou,
trazendo regras limitadoras de direitos dos Contribuintes, e não no campo
secundário, como alegado pela Autoridade apontada como coatora, mas na essência
do direito, porque passou a obrigar o Contribuinte a desistir de processo
administrativo, sem que essa exigência estivesse no ato legal, ou seja, na referida
Medida Provisória, no que é inconstitucional, porque os Órgãos Administrativos
que a expediram não tinham, nem têm competência constitucional para tanto.
A respeito desse assunto disserta CARVALHO
FILHO, José dos Santos:
“Poder
regulamentar, portanto, é a prerrogativa conferida à Administração Pública de
editar atos gerais para complementar as leis e permitir a sua efetiva
aplicação. A prerrogativa, registre-se,
é apenas para complementar a lei; não pode, pois, a Administração alterá-la a
pretexto de estar regulamentando. Se o fizer, cometerá abuso de poder
regulamentar, invadindo a competência do Legislativo.”[2]
Afinal, sobrepõe-se no nosso ordenamento
jurídico, como verdadeiro dogma, o princípio da legalidade, segundo o qual
ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de Lei(art. 5º-II da Constituição da República).
O art. 7º da mencionada Portaria, sem
dúvida, limita direitos, ou seja, não veicula norma que busca apenas aclarar
dispositivos da Lei, como alegado na manifestação da(s) Autoridade(s)
Impetrada(s).
Ora, qualquer norma que limita direito
finda também por alterar o núcleo obrigacional.
E nenhuma limitação de direito, tampouco
alteração do núcleo obrigacional pode ser veiculada em atos normativos
secundários, porque, no Brasil, desde nossa primeira Constituição, aquela de
1824, outorgada na época do Império, “Art. 179 - (...). Nenhum cidadão pode ser obrigado a
fazer, ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da Lei”(mantida
a redação originária, no português da época)[3],
regra principiológica essa hoje agasalhado no inciso II do art. 5º e, para o
campo tributário, no inciso I do art. 150, todos da vigente Constituição da
República Federativa do Brasil, sendo que no primeiro plano como garantia e direito individual constitucional.
Realmente, in casu, não poderia a Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 9, de
30.10.2009, ter imposto limitação ao uso do benefício fiscal veiculado pela
Medida Provisória nº 470/2009, até mesmo porque, caso não observada a limitação
do noticiado ato administrativo, implicaria em obrigar a Impetrante a pagar os
tributos em parcela maior que a admitida pela Medida Provisória, ferindo,
assim, outra regra constitucional, o inciso I do art. 150 da vigente Constituição
do Brasil, segundo o qual nenhum tributo poderá ser exigido ou majorado, senão
por Lei.
E, como vimos, o julgador administrativo
de segundo grau, relativamente a um dos processos administrativos, findou por
ignorar a exigência em questão dessa Portaria, certamente por ter ciência da
acima demonstrada estrutura constitucional do nosso sistema legislativo.
Tem-se, então, que a mencionada regra do
referido ato administrativo não é apenas ilegal, mas inconstitucional, porque
feriu diretamente regras da Constituição da República.
Conclusão:
De ofício, submeto esta Sentença ao duplo
grau de jurisdição.
Sem verba honorária (Lei nº 12.016/2009,
art. 25[4]).
Dê-se ciência desta sentença à Autoridade apontada como
coatora, na forma do art. 13 da Lei nº 12.016, de 2009, e à representação
judicial da UNIÃO, encaminhando-lhe estes autos, conforme legislação especial
que trata do assunto.
Com urgência, remeta-se cópia desta
sentença para os autos do Agravo de Instrumento noticiado nestes autos, aos
cuidados do respectivo Excelentíssimo Senhor Desembargador Federal Relator,
para os fins de direito.
Francisco Alves dos Santos
Júnior
Juiz Federal, 2ª Vara-PE
[1] O prazo de vigência dessa Medida Provisória encerrou-se
no dia 23 de março de 2010, mas os
atos praticados enquanto vigia têm plena validade.
[2] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Júris. 10ª ed. 2003, p. 38.
[3] Apud SANTOS JÚNIOR, Francisco Alves dos. Direito Tributário do Brasil: Aspectos
Estruturais do Sistema Tributário Brasileiro. Volume I. Edição 2ª, revisada
e aumentada, Olinda: Livro Rápido, 2010, p. 69.
[4] “Art.
25. Não cabem, no processo de mandado de segurança, a interposição de
embargos infringentes e a condenação ao pagamento dos honorários advocatícios,
sem prejuízo da aplicação de sanções no caso de litigância de má-fé.”